Os pretéritos do samba ou O samba „Plusquamperfekt“!

O pai foi criado no subúrbio de Viena. Odiava a escola porque segundo ele todos os professores eram nazistas, com exceção do professor de Desenho. Acabou virando artista, lógico. Raspou a cabeça dos lados, armou um moicano, tacou tachas no figurino. Com 18 anos ganhou de presente uma viagem à Amsterdam e foi todo eufórico experimentar os Cafés que vendiam haxixe do mundo inteiro. No meio do caminho um sujeito lhe vendeu uma mercadoria de primeira com qualidade superior a qualquer coisa encontrada nos locais, comprou. Ele e seus amigos voltaram excitados para o hotel pra fazer o primeiro baseado da vida. Decepção total: era tempero Maggi puro.
A mãe, brasileira, de criança pegou todas as micoses e perebas nas areias de Icaraí, cresceu e trocou a poluição da Baía de Guanabara pelo mar limpo e cheio de „gatos“ de Itacoatiara. Na roda de amigos além de torta de banana integral, biquini de crochê e muitos baseados, rolava também os mais diversos papos das mais diversas bocas:
– Cara, cu é foda de foder! Buceta por mais apertada que seja, é mole! – Falava Igor, bofe cheio de certezas que comia todas e não se enquadrava em nada, nem bicha, nem hippie, nem mauricinho. – Cu você precisa arrebentar as pregas, é muito mais difícil, cara! – E assim ela, que era a caçula da galera, foi crescendo e se moldando, entre um mergulho e um mate gelado, batendo palmas pro pôr do sol e acreditando que a era de aquário mudaria o mundo. Por um acaso veio para a Europa, por um acaso maior ainda parou em Viena e conheceu o cara do primeiro parágrafo.
Ele armava o moicano, jogava a jaqueta cheia de tachas por cima do ombro e ia pro único bar de doidões em Viena, um porão enfumaçado ouvir Kraftwerk e The Residents. Enquanto isso do outro lado do oceano, ela se vestia com longos vestidos indianos, enfiava os pés numa sandália de couro e ia ver Sá e Guarabira na estação das Barcas.
Enfim, Thulio era filho deste casal, mistura quase impossível que de tão impossível acabou dando certo. A mãe usava sua língua materna só para os adjetivos extremos, xingar ou amar. Para o resto ela dizia:
– Nada melhor do que ter uma gavetinha pra cada coisa, a vida decifrada em verbos modais: können, sollen, wollen, müssen, mögen, dürfen. Poder, dever, querer, gostar, permitir-se, (ser) obrigado. Tão simples, né meu filho? Tá tudo aí o que a gente precisa pra ser um ser humano civilizado.– Ela arregalava os olhos excitada. Ele já a conhecia, quando ela começava com suas definições se empolgava de tal forma que era difícil fazê-la parar. E ela continuava:
– Bulas e manuais de instruções? Só em alemão. Língua precisa, definida, nítida. Te agarrar e te „socar“ de beijos? Só dá pra falar em português, meu pequerrecho, pocorrócho, pucucho!
O mais velho ouvia uma frase e antes de sair batido, cochichava no ouvido do mais novo: „Liga não, é doidinha!“
– Modal vem de moldar. Assim se molda um ser humano, entende, Thuthu? Porque adorar, idolatrar, odiar, amaldiçoar isto tudo não faz parte da moldação, saca, filhinho? Faz parte da piração, sacou?
Thulio observava quieto os dois mundos em que aterrizou. Rapazinho de 7 anos compenetrado, discreto, conseqüente. Assimilava tudo calado. E tinha certeza absoluta que pocorrócho, pequerrechos e etc. eram palavras nobres e genuinamente corretas da língua portuguesa.
Complicava quando os pais brigavam por coisas banais como desembaraçar os cabelos de Thulio:
– Mas cabelo se desembaraça molhado!
– Não! Tem que esperar secar pra desembaraçar!
– Escuta aqui, você por acaso entende de cabelos? Você passou anos careca…
– Careca não, eu tinha um Moicano…
– E passava sabão em pedra pra armar! Eu sim tinha uma cabeleira encaracolada!
– Que nunca penteava…
– Nem precisava, tacava um Neutrox e tava beleza!
Thulio sabia esperar, ouvir, ponderar. 120 centímetros de gente super cool. Enquanto os dois falavam, ele montava uma arma mortífera com peças de Lego e conversava com seu Teddybär (urso de pelúcia):
– Enquanto esses dois streiten (discutem), as cabelos estão já seco …
Um belo dia a familia jantava, tudo nos conformes. Silêncio. A calma da civilização pairava no ar. Thulio abriu a boca:
– Eu „querrro“ aprender sambar!
Todos se entreolharam. A mãe na hora pensou: „Eu na condição de austríaca perfeitamente integrada no país, diria: meu filho, aprenda valsa, é muito melhor! E se eu fosse a mãe imperfeita seria: Ok, matriculo você no cursinho do Maurinho Mastro e aproveito e vou junto! Mas num pretérito-mais-que perfeito…“ – Ela abriu a boca grande e pulou da cadeira como que acordando de um pesadelo:
– AAAAAiiiiii!!! Meu filho não sabe sambar! SOCORRO! O que eu estou fazendo aqui? – Vira-se para o marido – E o pior: o que nós estamos fazendo com os nossos filhos, amôôr? Vão bora galera, já, já! – Thulio pensa: Ai, que mulher dramática! – A mãe não parava de falar enquanto retirava os pratos da mesa sem ninguém ter terminado de comer.
– Arrumem as malas porque estamos em outubro, a gente chega lá e até fevereiro temos tempo.– O pai olhava pro Teto.
– Mereço isto agora, meu Deus? A macarronada estava tão boa…
Ela falava sem respirar, equilibrando os pratos numa mão e com a outra puxava o queixo do menino em direção ao rosto dela:
– Mama te leva na Viradeiro toda semana, na feijoada da Mangueira, ah e a empregada da vovó já foi até porta-bandeira! Ela vai te ensinar tudinho!– O mais velho olha para a janela pra ver se não tem nenhum vizinho observando. A surtada continuava:
– … te inscrevo pra ala mirim da Porto da Pedra e em fevereiro você vai fazer bonito na avenida! Bora, bora, gemma, gemma (= vamos!)! E ainda por cima a gente vai comer feijão todo dia! – Ela encara a platéia. O pai agora olha pra baixo onde deveria estar o seu prato, o maior enfiado com a cara numa revista em quadrinhos, Thuthu pensativo apoiando o queixo nas mãos.
– O marido da Fabíola apresenta você pro Hans Donner, amor. Pô, conterrâneo, brother teu, Schatz! – O marido protesta:
– Pra eu fazer coqueiro virar mulher e mulher virar arco-íris? Ah, você acha que eu levo jeito pra fazer isso?
– Com dinheiro na conta a gente leva jeito pra tudo, Schatz! E imagina você que adora futebol, assistir a copa do mundo no Maráca! – Os olhos brilhavam, os braços em segunda posição de ballet tentando descrever a grandeza do Maracanã.
– Eu me viro de guia turística, dou aula de alemão, e no pior dos casos monto uma barraquinha de Strudel e Knödels no posto 9 e… Ué, por que ninguém se mexe? Galera, hellôô!
Thúlio finalmente se manifesta:
– Mãe, vai dar não, meu Teddybär vai sentir muito calor no Brasil…

Com quantos paus se fazem uma fogueira?

Aconteceu no início dos anos 80. Naquela época, achar agulha num palheiro era mais fácil do que ver um negro por estas bandas. Maurinho Mastro – nego bonito, baiano cheiroso que só ele, com ginga no corpo e sorriso irresistível, dentes branquinhos – pousou por estas terras pra tocar numa dessas bandas em algum festival desses numa dessas cidades, e acabou ficando. Vocabulário alemão primitivo, conquistava a todos só com a simpatia. As austríacas caíam na cama dele que nem peças de dominó enfileiradas, tum, tum, tum, tum…. E isso quando tinha cama. Porque Maurinho rodava a Europa de Kombi, junto com outros amigos, tocando samba, bossa nova e essas coisas de que gringo gosta. Ótimo percurssionista. Tinha ritmo no palco e na vida. Derrotava mulher e adversário só na lábia e no sorriso.

Voltando da Suíça, a galera para na fronteira pra ir ao banheiro, e Maurinho vê, jogados no gramado ao lado, vários pedaços de madeira em bom estado. Pô, a Kombi vazia, o inverno chegando, a madeira dando sopa… Seria tudo de bom na lareira do apartamento emprestado, que não possuía calefação. Maurinho rapidamente começou a recolher a madeira e colocar os pedaços no carro. O policial louro, alto, forte vem a todo vapor em direção ao nego.

– Ei, ei, você aí, africano!
– Eu não sou africano, sou brasileiro!

– Aaah, brasileiro, africano, pra mim é tudo a mesma merda! Que ideia é esta de pegar a madeira? Você tá pensando que tá na África?

Maurinho, muito nervoso, mas sem perder o bom tom:

– Eu não sou da África, sou do Brasil!

– Aaah, Brasil, África, pra mim é tudo a mesma merda!

Maurinho abre aquele sorriso „tudibom“ pra ajudar na desculpa esfarrapada:

– Ah, seu doutor. É que me disseram que, aqui na Áustria, tudo o que a gente vê no chão, a gente pode pegar.

– Aqui não é a Áustria. Aqui é a Suíça! – Maurinho rapidamente fechou o porta- malas, entrou no carro, ligou o motor e falou firme para o guarda:

– Aaah, Áustria, Suíça, pra mim é tudo a mesma merda! – E saiu batido, cantando pneu, deixando pra trás o guarda pasmado

A Aterrizagem da ficha Brasil

Eu tinha acabado de chegar no Brasil. Deitei na cama exausta depois de quase 20 horas de viagem, dois aviões, esperas, dá um peito, dá outro peito e umas 10 fraldas sujas. O cheiro de feijão temperando no alho entrando pelas narinas. Mamãe mandando brasa no fogão e a dor nas costas confundindo minhas emoções. Mal conseguia me mover. Minha cunhada e muito amiga desde a infância chegou e deitou suas mãos abençoadas de massagista profissional nas minhas costas. Pra cima, pra baixo. Forte, fraco. Repuxado, esticado, encolhido. Ritmado, leve, fundo, denso… gostooooso.
Acabada a sessão, virei o corpo agradecida:
– Minha linda, que delícia. Muito obrigada. Quanto eu te devo? – E já fui catando a carteira. Num primeiro momento ela ficou meio atordoada mas depois falou claro e firme:
– Vai tomar no cu!
Choquei.  
– O quê?
– Vai tomar no cu, mulher, que pagar o quê! – Fiquei meio sem graça e depois relaxei: Ah, chegueil! Welcome home, Lina. Aterrizei na minha terra, aonde pessoas amigas te mandam tomar no cu por cortesia e amor.

Esmalte Colorama diz Adeus

A versão original desta crônica é uma carta, dirigida à minha família, e, entre outras coisas, exprime a dor de estar ausente quando alguém querido morre e de não conseguir chegar para a despedida. Os enterros acontecem, no Brasil, no máximo 24 horas após a morte – ao contrário daqui, onde demoram até duas semanas. Escrever, às vezes, é tão necessário quanto sentir.

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