Esmalte Colorama diz Adeus

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A versão original desta crônica é uma carta, dirigida à minha família, e, entre outras coisas, exprime a dor de estar ausente quando alguém querido morre e de não conseguir chegar para a despedida. Os enterros acontecem, no Brasil, no máximo 24 horas após a morte – ao contrário daqui, onde demoram até duas semanas. Escrever, às vezes, é tão necessário quanto sentir.

Ela vinha toda bonitinha, sempre de vestido estampadinho e bem-passado, batom vermelho combinando com as unhas eternamente vermelhas, que eram refeitas por ela mesma todo domingo, com esmalte Colorama, durante o Fantástico. Dobrava um pouco os joelhos, esticava os braços para frente e franzia a boca em flor:

„Levanta pra dar um beijo em tia Marininha porque ela já vai trabalhar!“ Eu, repleta de 18 anos, fugida de casa, dormia no chão da sala e acordava com a cara amassada, sem entender nada. O perfume dela entrando nas minhas narinas,acompanhado de um sonoro beijo, era a certeza de um novo dia.

Minha tia maravilhosa, humana, equilibrada. A vida inteira rodeada de rituais que lhe faziam viver, dançando sem nunca ter sido bailarina. De manhã, a reza ainda na cama. Cidinha Campos no rádio era consumida junto com o café com leite e pão com manteiga. Depois vinha o banho com sabonete Lux, Colgate nos dentes, Minancora nas axilas. A escolha do vestido do dia, a maquiagem… E lá ia ela, com os beijos da sobrinha no rosto, tomar condução, bater o ponto, ir pra faculdade… Sempre em busca de mais saber, de mais viagens, de mais vida além do cotidiano. Batalhando a realidade pra viver o sonho de viajar.

Enquanto eu delirava na viagem de ser modelo, ser famosa, titia não delirava, titia vivia a vida, da melhor forma possível, sempre com os pés no chão e o humor nas alturas. Quando eu era pequena e morava com vovó, lembro bem quando ela chegava do trabalho toda contente, fazendo piadas, alegre, feliz. Eu, com meus olhos grandes, ficava encantada, parecia que o dia ia nascer de novo. Apresentou-me o maravilhoso mundo de Monteiro Lobato por trás das capas duras cor de musgo. Agente, a gente, a você, à praia, por que, porquê… Titia ensinava o porquê dos porquês, e sempre fez questão de que seus sobrinhos falassem português corretamente.

Titia morava sozinha e nunca conheceu a solidão. Os sobrinhos, seus filhos; o trabalho, um fiel marido; as excursões, um bom amante. E, assim, a vida era uma valsa em que ela rodava, rodava, mas tudo ficava no seu lugar. Cada acorde, seu tempo; cada tempo, sua melodia.

Briga entre mãe e filhos? Titia era a missionária da paz. Foi até São Paulo de ônibus, hospedou-se na nossa casinha humilde pra conversar sobre a nossa vida. Eu e meu irmão vivíamos deliciosamente perdidos na Paulicéia desvairada. Ela acordou de manhã e repetiu o ritual de sempre: Colgate, Lux, Minancora, batom vermelho, vestido florido. Sentou desconfortável, com toda a pose que possuía, nos nossos almofadões esparramados pelo chão. Se preocupava conosco, com nosso futuro. Queria saber pra poder entender. A gente não entendia nem queria entender. „Futuro? Quando chegar lá eu resolvo, tia!“ E ela aceitava, entendia, acariciava meus cabelos e apoiava a cabecinha no meu ombro. E esse ritual, com o passar dos anos, substituiu muitas palavras. Ela chegava perto e apoiava a cabecinha no meu ombro, cada vez mais doce, cada vez mais compreensiva, cada vez mais divina. Sempre com o mesmo cheiro: Colgate, Lux, Minancora. A vida é feita de coisas singelas, coisas estáveis e duradouras. Um Colorama novo a cada Fantástico. A beleza de cada dia em um vestido florido. Um Leite de Rosas no pescoço, e tudo faz sentido.

Eu fui em busca dos meus sonhos: Madri, Paris, Londres, Milão. Conheci altos e baixos. Enquanto isso, tia Marininha construía a sua vida no ritmo das valsas, sem vertigens. Colgate, Lux, Minancora. Segunda, terça, quarta. Janeiro, fevereiro, março. Figueiredo, Tancredo, Sarney.

Ela nunca sonhou que um dia chegaria lá. Lá aonde todos querem chegar. Titia passou no concurso! Titia subiu de posto! Titia conseguiu um emprego melhor! As excursões a Guarapari aumentaram para Sete Quedas, Maceió e,agora, Buenos Aires e, finalmente, Europa!

Titia se agarrou o quanto pôde ao seu estilo de vida. Colgate, Lux e Minancora cada vez mais espremidos entre Clinique, L’Oreál e Lancôme. A manicure da Moreira César só trabalhava com esmalte importado. Ela duvidava e olhava as unhas, tentando gostar: „Com Colorama acho que ficaria melhor.“ Uma nova melodia entrava despercebida no universo de Marininha, e ela se esforçava pra acertar o passo. E mais sucesso e mais excursões. Tailândia, África do Sul, Japão. E Viena, é claro.

– Mas, tia, no mesmo dia Naschmarkt, Schönbrunn, Stephansdom, MuseumsQuartier e, à noite, valsa no Kursalon?

– Sim, mas eu vou largar tudo pra ficar com você!

E fomos ao Café Central, passeamos pelos becos do primeiro distrito, maridão lhe mostrou coisas que não estão em nenhum guia turístico. Ela ficou encantada, a vida no ritmo de que ela gostava. E, no dia seguinte, toca pra Praga, Budapeste, Cracóvia, 10 cidades em 14 dias, mil desejos em 24 horas. E, entre uma viagem e outra, era mais gente precisando da ajuda cada vez maior que ela dava, cada vez mais frequente, o filho da irmã da empregada que precisa ir ao dentista, a prima da tia-avó que não tem aposentadoria. A vida se atropelando no próprio sucesso. E mais metros quadrados. Titia comprou apartamento em Búzios. Titia comprou casa em Penedo. Titia tá bem, tá ótima, tá eufórica. Titia tá mal, tá péssima, tá internada. Titia vivia correndo, vivia buscando o que já tinha encontrado, sem saber que daria muito pra perder tudo e ter de novo tempo pras rezas, Cidinha Campos, Colgate, Lux, Minancora. Mas a música era sem ritmo, o pé não acertava o passo. As emoções aprisionadas numa cadeira de montanha-russa. Daí a cabecinha começou a ficar cansada. Nas esporádicas vivências que tínhamos, a cabecinha apoiava-se cada vez mais pesada no meu ombro. Apoiava e ficava como se dissesse: estou cansada, agora sou eu que não entendo nada, que não quero entender mais nada, cuida de mim… Eu a cheirava como se procurasse os vestígios da identidade. Colgate, Lux, Minancora? Tia, mãe, amiga!

O torpedo me alcança no meio do Prater: „Titia se foi“. O cenário mais bucólico impossível. Em cima, o céu branco da neve que cairá. Embaixo, o chão branco da neve caída. Labirintite visual. Me agarro nas árvores como referência do real. Minha respiração é o único barulho numa paisagem sem fim. A bota afundando na neve. As lágrimas fazendo minúsculos buracos na superfície (do céu? da terra?). Volto pra casa. Espalho suas fotos pelo tapete, suas cartas. Por que eu não estava lá no Natal? Ou mês passado? Ou ontem? Por que eu não estou lá hoje?

Agora ela se foi, e só me resta cuidar bem da tia Marininha que ficou dentro de mim, de tudo de bom que ela me passou toda a sua vida, seu bom astral, sua inteligência, simpatia, carisma e bondade infinita.

Lá fora, a neve finalmente cai, e imagino tia Marininha suspensa no ar, dançando entre os flocos. Colgate, Lux e Minancora transpiram na atmosfera. E ela, livre, leve, como a bailarina que sempre foi, dançando a vida. Vestido florido tremendo no ar, unhas Colorama piscando no espaço. Um acorde depois do outro. Melodia, corpo, espaço. Cada coisa no seu lugar, tudo no seu tempo. Alles Walzer!

Mas já chega, titia, agora entre e fique aqui comigo, lá fora está muito frio e eu estou tão sozinha, fica comigo, prometo cuidar de você muito bem dentro de mim.

*Alles Walzer = todos valsando. Com essa frase, dita pelo mestre de cerimônias, sempre se começam os bailes da Áustria. É a ordem para a orquestra começar a tocar, e os convidados começarem a dançar.

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