Asanas, Pranaymas e Sacanas

Atenção: qualquer semelhança invertida com a geração passada não é mera coincidência, mas, sim, plena ironia.

Huuu, fuuu, huuu, fuuu.

Cheiro de incenso no ar. A mãe, serena, sentada no meio da sala, em posição de lótus. Inspira fundo e expira o ar em curto espaço de tempo, movendo o abdômen. Ruídos nasais. Fu, fu, fu, fu… Pranayama.
O filho de dezoito anos chega Continue reading

A dinastia dos Balangandães

A televisão ficava no centro do armário embutido. À esquerda as saias e calças, à direita blusas e vestidos. Nas portas dos armários, espelho, balangandães de todos os tipos e tamanhos, lenços, maquiagens. Cheiro de sabonete Lux dominando o ambiente.
Ela, de toalha enrolada no corpo, mergulhada no guarda-roupa.
Eu, deitada na cama, mergulhada na TV.
„Abra suas a-sas…“ Letras em Neon movem-se frenéticamente. SÔNIA BRAGA.
Ela passava a mão entre as roupas, pensativa.
Eu: Você prometeu comprar isto para mim!– Aponto para a meia de lurex colorida dentro da sandália prateada. Quando ela olha, a imagem já se foi, dando lugar a caras e bocas contornadas por neons coloridos.
„…solte suas fé-é-ras…“ ANTÔNIO FAGUNDES
Ela escolhe um vestido de lastex estampado e passa para o outro lado.
– „Ô mãe, cê tá me atrapalhando…“–
„…caia na gandaia-a… “ JOANA FOMM
– Já tô acabando, minha filha.– Ela pendura um colar.
„…entre nessa festa…“ GLÓRIA PIRES
Ela coloca anéis, pulseira, brincos.
Botas de verniz vermelha berrante dançam em cima de luzes coloridas. Preciso aprender este passo…
„…E leve com você-ê-ê-ê seu sonho mais loooouuco“. LAURO CORONA.
Ela passa para o outro lado e puxa um lenço da porta e enrola no pescoço.
Eu me imagino na pista de dança. Como elas conseguem dançar de salto alto?
„…Eu quero ver esse corpo…,“ PEPITA RODRIGUES.
Ela pendura outro colar.
„…lindo, leve e solto…“ LÍDIA BRONDI.
Mais um colar.
„…A gente ás vezes, sente, sofre, dança, sem querer dançar…“ REGINALDO FARIAS.
Ela tira um colar e se olha de perfil no espelho.
– Mãe, se eu fizer um permanente meus cabelos ficam assim?– Aponto para a tv, com a outra mão puxo o vestido dela.
Ela balbucia a resposta enquanto passa batom nos lábios.
– Ãaão! Eeu abeelo é lindo arrim!
„…Na nossa festa vale tudo! Pode ser alguém como e-eu, como vocêêêê“.
Ela coloca um maço novinho de Shelton na bolsa, vira-se para mim e se debruça na cama querendo um beijo de despedida. Os balangandães encostam no meu rosto cegando meu campo de visão.
– Aonde você vai, mãe? – Afasto os balangandães enquanto procuro os olhos dela.
– Encontrar umas amigas.
– Quero ir também!
– Você é muito pequena e isto não é programa para criança!
– Você mesma me disse outro dia que eu já sou uma moça…
– Minha filha, escuta – Ela senta na beirada da cama e segura meu rosto com as duas mãos. O cheiro de creme Pond’s invadindo minhas narinas – Nós vamos fazer fofoca das sogras, falar mal dos maridos, de cirurgia plástica e limpeza de pele, da inflação, dos chefes cafajestes… e… fumar sem parar! Você odeia fumaça de cigarro, eu sei. Então? O que você vai fazer lá?
– Ficar quietinha e ouvir as fofocas todas!
– Não! Além do mais, depois de uma hora você vai ficar com sono e vai me encher o saco pra ir embora. Agora chega de discussão. Assim que acabar a novela, vá escovar os dentes e dormir por quê amanhã tem aula. E saiu, bolsa rente ao corpo, salto agulha, balançando os balangandães.
Cresci e troquei o armário embutido dela pelo dos irmãos mais velhos. A composiçao era a mesma, á direita, roupas de Guido, á esquerda, Miro. mas no centro, ao invés da TV, a eletrola berrava Led Zeppelin, Supertramp, Arrigo Barnabé, Laurie Anderson. Ela passava pelo corredor gritando.
– Meu Deus! Isto nao é música! Abaixa esta porcaria!
Numa bela tarde desses tempos sem compromisso, Guido, meu eterno ídolo, comprou um disco da Tetê Espíndola
e ouvíamos chapadões no quarto. Aqueles agudos eram um bálsamo pros meus ouvidos capengas. Pássaros na garganta.
„Sertaneja se eu pudesse…….Acabava com a tristeza….Por que choras quando eu canto? UUUUAAAA!“ Orgasmos em formas de decibéis. Guiada pelos ouvidos, Dona Zilda entrou no quarto em transe, curiosa.
– Quem está cantando?
– Essa aqui. – Guido estendeu a capa do disco. Ela observou com certo desdém a hiponga seminua tomando banho na cachoeira. – Você gosta?
– É muito bonito, que voz linda! – Dona Zilda fechou os olhos. Ouvia a voz, os pássaros da sua infância, as carambolas caindo das árvores, os banhos de rio, os irmãos de barriga inchada, as festas do interior, montar cavalo sem sela… Olhos úmidos. Interrompi sua viagem ao tempo.

– Ela vai cantar hoje á noite lá no teatro Leopoldo Fróes. – Assim que terminei a frase, Guido, que estava de costas para ela, me olhou de testa franzida balancando a cabeça negativamente. Dona Zilda com o rosto iluminado respondeu:
– Eu vou! – Antes que pudessemos dizer qualquer coisa, ela já estava toda cheia dos infinitos balangandães, batom, salto alto, seus inseparáveis cigarros Shelton na bolsa, pronta pra sair.
– Mas mamãe, só vão jovens…
– Ué, e daí? Eu não sou assim tão velha, sou uma coroa pra frentex como você mesma costuma dizer – Guido, puto da vida comigo, tenta argumentar:
– Mamãe, eles fumam muito…
– E daí? Eu também! – Eu querendo esclarecer:
– Mas é outro tipo de cigar……ai! – Beliscão do Guido.
Dona Zilda, uma mulher que nunca saiu dos trilhos: geração anos 50, Getúlio Vargas, ditadura militar, comunista come criancinhas, Fidel Castro é o diabo na terra, as filhas casarão virgens e os filhos serão engenheiro e médico, tudo nos conformes, Dona Zilda tinha uma idéia fixa e formada de como seriam os filhos. A ditadura Geisel reinava fora e dentro de casa. Homosexualismo? Uma doença horrível. Maconheiro é marginal, criminoso, que horror! Como explicar em cinco minutos um outro mundo à Dona Zilda? Que maconha faz bem, que o amor livre é maravilhoso, que bom é tomar banho nú de cachoeira em Maromba e depois meditar com os Hare-Krisna. Beijar na boca dos amigos, de preferência 3 ou 4 ao mesmo tempo e claro, nunca pentear os cabelos! Como? Missão impossível!

Chegando na bilheteria do teatro, Guido me puxou num canto.
– Isso é problema teu, leva ela lá pro balcão de cima e se vire sozinha, bom show! – E sumiu com a „galera bata indiana“ em direção á platéia.
Dona Zilda assistiu o show inteiro com uma mistura de encantamento e espanto. Encanto com a voz quebra-cristais e espanto com a nuvem densa de fumaça com cheiro suspeito que reinou no teatro.
– É incenso, mamãe, pra espantar os maus fluidos…
Nem em cinco minutos nem em cinco anos conseguimos explicar nossas „outras palavras“ para Dona Zilda, sempre agarrada ás suas convicções e valores, como a bolsa que sempre carregava no ombro com o braço por cima pressionando-a junto ao corpo. Medo que roubassem suas certezas.
Por respeito à ela e temendo o corte da mesada, a gente tocava as diferenças ideológicas com a barriga.
– Essa tua nova amiga com esses dedos arreganhados dentro da sandália de couro, tem cara de quem „puxa“ maconha – Eu pensava nos cruzeiros da mesada.
– Não, não, imagina mamãe…..tchauzinho, vou pra praia, não precisa me esperar pro almoço.
Dias depois:
– Este teu amigo que veio aqui outro dia dobra tanto os pulsos. Será que ele é…– Eu pensava nas conquistas já adquiridas de voltar depois da meia-noite.
– Tô atrasada pra aula de inglês. Beijinho mãe, tchau!
Dona Zilda vivia desconfiada de tudo. Possuida de uma fantástica expressão corporal, ela nos alertava:
– O caminho que eu mostro pra vocês…– E colocava os braços em paralelo na frente do corpo, as palmas das mãos, separadas de frente uma para a outra, mediam a distância de uns 20 centímetros mais ou menos, os braços seguiam um movimento contínuo ritmado, como uma linha reta, uma estrada sem curvas – … é este! O caminho certo, direito. Mas se vocês escolherem outros caminhos…– Os braços antes tão harmonicos se jogavam para cima, sacudindo num ritmo frenético, as mãos tocando mil tamborins imaginários – … é problema de vocês!
Resultado dos turbulentos anos: todos felizmente „desencaminhados“. Nada saiu como Dona Zilda tinha planejado. E isto era motivo de brigas intermináveis, conflitos insolúveis.
Eu e ela. „Pólos iguais se repelem“. A Lei descrita nos meus livros de Física era presença constante no apartamento do Campo de São Bento. Eu sabia que precisava seguir meu próprio „(des-)caminho“. Com dezoito anos na carteira de identidade, liguei pra ela no escritório e avisei.
– Não precisa me esperar para a janta. Tô indo hoje pra São Paulo.
– Volta quando? – Ela quis saber.
Ficou sem resposta. Voltei depois pra visitar, pra passar a páscoa e etc. Também sem resposta ficou quando lhe disse que não estaria presente no Natal por que iria para a Europa. „Volta quando?“. No ticket de avião e na minha cabeça, só havia passagens de ida. Voltas só para passar férias.
Os anos passaram com um oceano nos separando e parece que a distância me deu a visão certa da pessoa minha mãe. É como um livro que se coloca bem perto do rosto. Atrapalha, irrita e não consegue-se ler nada. Afastando-me, pude „lê-la“ mais e melhor. Entender sua cabecinha e seus valores que durante todos estes anos continuaram intactos. Aceitando pra poder entender. Entendendo pra poder aceitar. Mas o oceano de distâncias ajudou também a compor o „Aus dem Augen, Aus dem Sinn“ (o que os olhos não vêem, o coração não sente). E assim fomos levando.
Um belo dia, Dona Zilda me liga.
– Anota aí, minha filha: AR 3480
– O que é isto, mãe?
– O número do vôo. Tô chegando na sexta pro café da manhã.
E agora? Dona Zilda na Áustria! E na minha casa! Só para uma „pequena temporada de 2 meses“, como ela fez questão de frizar.
No primeiro dia caiu numa profunda deprê. Um pais sem área de serviço nem tanque nos apartamentos. Sem quarto de empregada e o pior de tudo: sem empregada! „Coitada da minha filha“.
– As máquinas fazem tudo, mamãe… lavam pratos, roupa…
Seus olhos passearam sobre o lustre sujo, pela estante de vidro empoeirada… Ela intencionou falar qualquer coisa mas se conteve. Depois do baque inicial, aprendeu a curtir o ambiente e a cidade. Descobriu a delícia que é tomar banho de banheira, comer linguiça na rua, andar sem medo de assaltos…
Já foi para ela uma aventura deslumbrante ir sozinha ao BILLA (Supermercado) fazer compras. Pegar metrô, ônibus ou ir muito longe de casa sozinha ela não queria. Tinha medo de se perder e não conseguir voltar. Eu trabalhava muito e ela ficava sozinha em casa, cozinhando, cozinhando. Ligava pra mim no escritório: „Minha filha, a carne-seca tá pronta. Tá aqui me olhando do tabuleiro. Ficou linda! Só falta falar a danada! Passe no mercado e me compre um arroz decente por que este tal de Basmati achei um horror!“ Leu todos os livros em português que existia aqui em casa. Fez tricot, crochê, costurou meias, consertou cortinas…
Uma bela noite, me arrumei toda, pendurei meus balangandães (tinha a quem puxar!), catei batom, celular, enfiei um discreto embrulhinho na bolsa e fui até a sala onde ela via o video de „Orfeu Negro“ pela terceira vez pra me despedir. Me abaixei e estiquei o rosto para beijá-la.
– Aonde você vai? – Ela afasta meus balangandães do seu rosto enquanto procura meus olhos.
– Vou encontrar uns amigos.
– Eu quero ir também.
– Mas a gente vai falar alemão…
– Mas a Mariana e a Verinha não vão?
– Dona Zilda, lá não é lugar de velh.. digo senhora
– E você é o quê? –
– Uma mulher, ora bolas! – respondi impaciente ajeitando os sapatos de salto alto. – Sentada no sofá, ela segurou minha mão e me olhou nos olhos. O tempo voltou no espaço. A mãe onipotente que eu, menina, precisava levantar a cabeça pra ver seu rosto, se transformou numa senhora de olhos vividos e enrugados que me encarava por trás dos óculos como uma criança pedindo bala.
– Eu também sou uma mulher, minha filha, deixa eu ir?
– Ô, mãe, depois de uma hora você vai ficar com sono e vai me encher o saco pra ir embora…
– Num vou não, vou ficar quietinha… Me leva com você?
Impaciente, soltei uma bufada de ar. Como sair desta agora? Doida pra tomar umas cervejinhas, o taxi esperando lá embaixo. Decidi acabar de vez com a velha e fora-de-moda hipocrisia ideológica que nos separava uma da outra. Coloquei minhas mãos na cintura, requebrei os quadris um pouco pra esquerda, olhei-a firme nos olhos e disparei:
– Olha, Dona Zilda, nós vamos fazer fofoca dos maridos, das sogras, falar mal dos austríacos, falar sobre botox e silicone, as bichas loucas minhas amigas, vão soltar a franga e – separei minhas mãos medindo a distância de uns 20 centímetros mais ou menos – vamos fumar um baseadão deste tamanho! Tá pronta pra encarar esta? Então gema! (=vamos!)

Obs 1: A foto da cachoeira em Maromba é do Muru lá pelos meados dos anos 80…
Obs 2: Se você está usando cinto dourado e vestido de lastex pela primeira vez na vida, não sabe provavelmente qual novela eu adorava ver. Clique aqui para saber e obrigada Youtube! por poder ver Julia dancando de novo

Curriculum (mais que) Vital!

Me sinto tomando o ônibus 30 para o centro da cidade. Exames do vestibular. Será que estudei tudo mesmo? Torço pra conseguir lugar sentada e poder fazer uma rápida revisão da matéria. Ele chegava como sempre barulhento e soltando fumaça preta. Tlin, tlin. O trocador de testa suada e longas unhas no dedo mindinho, bate com uma moeda na barra de metal avisando assim ao motorista que pode partir. O ônibus arranca ainda de portas abertas. Bruuummmm. Mas não! Corta! O cenário é outro, só a sensação é a mesma. O ônibus chega no minuto exato. Silencioso, „inclina-se“ para a calçada abrindo três portas ao mesmo tempo. O sensor eletrônico fecha as portas automaticamente antes do veículo partir. Todos encontram lugar para sentar. Viena, um porto seguro num mar agitado.

Aproveito para me preparar, tiro os papéis de dentro da bolsa enquanto penso: Será que não esqueci nada? Onde parei? Quem sou eu? E começo a estudar para a „prova“:
1983_ Completa o 2 grau no colégio Gay-Lussac, Niterói
O cara com certeza vai franzir a cara e soltar um “ Wie bitte, Gay?“ (= Como assim? Gay?) seguido de um: „Nit, was?“ (= Nit o quê?) Vou ter que dar minha respostinha padrão: Sabe aquela paisagem linda que você vê do Rio? o Pão de Açúcar, o Corcovado? A foto foi tirada lá, sabe? Mas não precisa virar de costas…E quanto ao Gay, que eu saiba, era um biólogo famoso)

Desço do ônibus em direção ao metrô. A passagem subterrânea parece um grande salão, pessoas se dirigindo para todos os lados. Me imagino numa pista de esqui, desvio dos passantes em passo lento como se fossem bandeirinhas fincadas na neve. Zum, zip, zum! Alguns me olham irritados: „Que valsa é essa?“ Sim, por quê o vienês não anda nem corre, ele valsa pelas ruas. Escadas rolantes me levam para aonde eu quiser. Viena, um útero protetor num corpo maltratado.
Esperando o metrô, olho para a frente, o placar televisivo mostra a lua rodando: „Quem tem tendência á melancolia, deve fazer passeios ao ar livre hoje. Olho para cima, placar eletrônico avisa que em dois minutos o metrô chega. Viena, um berço limpo e acolchoado numa casa abandonada.
„Zurücktreten!“ (=Afastem-se) O grito vindo do alto-falante corta meus pensamentos. Entro no trem. Cheiro de salsicha no ar. Todos sérios. O(a) Austríaco(a) antes de sair de casa, tira o sorriso, guarda no bolso e só tira em casos de extrema necessidade. „Zug fährt ab!“ (=O trem vai partir) Faltam duas estações, será que chegarei na hora? Se tudo aqui é tão pontual, que desculpas darei para o atraso? Volto a estudar para a „prova“.
1983/84_ Presta vestibular para Ciencias Sociais e passa para o segundo semestre.
Lá vem a perguntinha: – „E nestes 6 meses a senhora fez o que?“ – Ficava o dia inteiro de bobeira em Itaquá, estiradona no sol, galera manera, autos banhos de mar, comia um sanduba do Marcelo natural, dava um rolé na prainha e…Pára, Lina, pára! Assim você não consegue nem emprego de faxineira pra limpar janela no inverno!
„Stephansplatz!“ Caraca, tenho que descer! Coloco a papelada toda dentro do portfolio, páginas da minha vida, desarrumadas, soltas…Será que não esqueci nada? Onde parei? Quem sou eu?
Conexão linha laranja. Esqueci de bater o ticket, será que tem Kontroller* na área? Vagão vazio, lugar á escolher, amo Viena.
1984_ Cursa a Escola de Teatro Martins Pena no Rio de Janeiro.
Já sei o que ele vai quere saber: „Não concluiu por quê?“ Por quê era um bando de chatos, rasta-panos, sei lá, cansei, virei New-Wave, pirei… Sabe aquela música: „Um belo dia resolvi mudar(…), me libertei daquela vida vulgar, que eu levava estando junto á vocêê!“…..Tudo bem, eu aceito limpar as janelas mas só as partes de dentro!
Daí mudei mesmo:
1985_ Curso de modelo e manequim na Socila.
1985/86_ Curso de modelo e manequim no Senac.
Lina, errar uma vez é humano mas duas…Bem, isto prova como sou original. As outras são modelos e viram atrizes, eu era atriz e virei modelo!
Ele vai levantar as sombrancelhas: „Aber von Sozialwissenschaftlerin zum Schauspielerei dann Model???“ (= De socióloga para atriz e depois Modelo?) Ok, ok, eu limpo as janelas de fora também!
Posso aqui dar uma resposta despojada tipo: „Pro Senhor entender: naquela época mulher alta e magra, ou era jogadora de basquete ou manequim!“ Acompanhando um sorrisinho pra dar uma descontraída no clima…
As escadas rolantes do metrô me conduzem em ângulo ascendente para um céu azul que se não fosse o povo todo agasalhado eu iria intuitivamente pensar um hoje-vai-dar-praia. Ao invés disso, a escada me joga na rua e o vento frio bate na cara me fazendo cair na real. Odeio Viena.
Entro no luxuoso prédio. Ajeito os papéis do currículo dentro do Portfolio enquanto a recepcionista liga para o diretor criativo:
– Senhora Mares está aqui para entrevista ao cargo de designer.
Terceiro andar. Enquanto subo as escadas, os anos passam em revisão. Cada degrau, cada lembrança…Será que não esqueci nada? Onde parei? Quem sou eu?
1986_ Mudança para São Paulo. Trabalha como modelo e manequim pela agência Special.
Vinte aninhos e autônoma. Caia na noitada paulistana, Bexiga, Madame Satã, Cais…, durmia um pouquinho, lavava a cara com água gelada e ia para os Castings e Shootings e ninguém nem notava as olheiras… Bons tempos. E como estava bom demais, resolvi mudar de novo:
1987_ Chegada na Europa.
Aí que eu vi com quantos paus se fazem uma canoa – e tô vendo até hoje! Segundo andar. Escuto meu coração bater. Nervosa. Há um mês que esta entrevista está marcada e agora faltando poucos degraus, não consigo me lembrar de tudo o que já fiz, por onde já andei…O que vem agora? Ah, claro:
1988_ Mora em Paris e Londres trabalhando como modelo.
Peraí, Lina, mentira Deus castiga. Correto é tentando trabalhar como modelo. Arrumadeira, Panfleteira, Cozinheira, Breakfasteira*… Nesta fase aqui é mais prático se ele perguntar que tipo de trabalho eu não fiz.
1989_ Mudança para Viena.
Com certeza ele vai fazer aquela perguntinha clássica: „Por quê Viena?“ O Austríaco e seus complexos de inferioridade. Opalá. Acabou os degraus. Levanto meu olhar e deparo com o dito cujo na minha frente.
– Hallo, Frau Mares. Ich bin Schöpferberg. (= Oi, Senhora Mares. Sou Schöpferberg)
O homem elegante de terno caro e perfume um pouco além da conta me estende a mão e um sorriso. Minha primeira impressão foi palpite bicha nível 2 para 1. Explicando: nível 1_ É bicha assumida e resolvida. Não precisa de artifícios fashion para esconder nem mostrar nada. Nível 2_ É bicha e ele mesmo não sabe que é! Com o passar dos anos, sempre tentando tapar o sol com a peneira, acaba virando um assexuado com óculos quadrado de aro grosso e calças acima da cintura. Nível 3_ Não é bicha e só por que não senta de pernas abertas, não fala grosso e não coça o saco, minha arcaica educação latino-americana o julga como tal! Sendo assim, suspirei aliviada, com bichas me sinto daheim (=á vontade, em casa)
Ele me guia através de um corredor comprido até a sua sala, No caminho fez a primeira perguntinha de praxe e a resposta como sempre teve efeito imediato. Ele pára de andar, vira-se para mim, os músculos facias relaxam, o rosto se ilumina. Fecha os olhos e suspira jogando o corpo um pouco para trás enquanto abre os braços para cima como se louvando á Deus e diz com melodia na voz:
– Aus Braaa-siii-lieeen! (= do Braaa-siiil!) Pude escutar os tamborins tocando nos seus neurônios. Vi o contorno do Pão de Açúcar refletidos na sua córnea. Se fosse brasileiro jurava que tinha pego um santo! Qual seria a reação se disesse que sou do Egito? Ou Equador? Sudão? Um dia minto só por curiosidade.
Entramos na sua sala. Me deparo com as janelas empoeiradas e faço uma piadinha pra mim mesma: Ai, Lina, se não rolar como Designer… Sentamos um de frente ao outro. Uma mesa grande nos separa.
Ele, já recuperado do choque Brasil, parte para a segunda óbvia perguntinha:
– Aber warum Wien? Rio ist doch so schön… (= Por que Viena? O Rio é tão lindo…)
Caraca, ele começou o interrogatório justamente onde eu tinha interrompido a minha retrospectiva. E agora? Onde parei? Quem sou eu?
– Por que queria passar o natal com meu primo e fui ficando, ficando…
– Einfach so? 18 jahre? Ele folheava o Lebenslauf (Curriculo) que no meu caso é literalmente uma vida em corrida!* – Langer Besuch, oder? (=Visita longa, né?)
Eu posso também limpar o porão do prédio, vai…
– É… Eu continuei trabalhando como modelo (digo tentando trabalhar) Afinal, – Me ajeitei na cadeira, levantando o queixo e olhando firme para ele – Sou uma mulher persistênte, tenho perseverança! (pra não dizer cabeça dura!) E ao mesmo tempo, fiz cursos de alemão, cozinhei num restaurante Mexicano…
– Aber alles gleichzeitig? (=Tudo isto ao mesmo tempo?)
E ainda dava pra sair depois do batente, dançar no Volksgarten, comer uma Wurst na barraquinha da òpera… Cê num sabe de nada, cumpadi!
– Sim! Como o senhor pode perceber, tenho grande talento para Zeitmanagement…(= administrar o tempo)
Ele não precisa ficar sabendo que as tortilas queimavam, que não passava em casting nenhum por quê engordei horrores comendo linguiça e com a cabeça ainda tonta de Weissgespritz (= Vinho branco + Soda) do balaco anterior, não havia como entender os acusativos, genitivos e todo o resto desta lingua danada…
Ele serviu um cafezinho. Enquanto saboreava o café, ele olhava o tal papel (páginas da vida!) como devorando um crime de suspense. A conversa foi ficando mais informal e eu pra variar abri de novo o livro da minha vida assim tão ingenuamente. Contei do blackmarket loja de discos e bar, onde servia café para os melhores Deejays da cidade, vendia Red Bull nas festas do Gasometer, misturava Cocktails no legendário „Die Bar“ na Sonnenfeldgasse…
– Eu frequentava muito o „Die Bar“– Observou-me por cima das lentes enquanto tomava mais um gole de café. Seu olhar era uma mistura de simpatia e espanto.
– Pois eu sabia que você não me era estranho. ..–O café estava muito forte para o meu gosto. Tentava recordar o que tinha colocado na minha própria vida, digo no papel que já nem me lembro, tantos empregos, tantos países, Onde parei? Quem sou eu?
Ele queria saber mais.
– Você lembra da Freihaus?
– Claro! Era nosso ponto de encontro. Meu primo trabalhava lá…
– O Ja-Bar que só abria ás 5 da manhã e…
– …era a esticadinha obrigatória depois que o „Die Bar“ fechava…– Rimos, cúmplices de um universo chamado Viena anos 90.
Olhava para mim, sorria, olhava para o curriculo entusiasmado. Me senti vendendo um roteiro para filme de aventuras. Mas o que eu vim fazer aqui mesmo? Onde parei? Quem sou eu?
1994_ Estuda Publicidade na Universidade de Viena
– Não conclui por que tinha que trabalhar no Kiang*…
– Kiang? Eu adoro comer lá! – A entrevista (que entrevista?) para emprego (que emprego?) tomou rumos de papo animado. Na ausência do fator bofal (homem heterosexual), não precisei me preoucupar em ser mal entendida com a minha falta de distância e privacidade. Além do quê, a pinta de bicha do cara contribuiu pra uma certa afinidade. Bichas adoráveis, o que seria do mundo sem elas!
–… Fui me virando, fui levando até que um dia falei chega! Comprei um computador e virei Designer…
Ele como se saindo de um transe, acordou no meio do filme. Afastou de repente as taças de café para um canto da mesa, ajeitou os óculos no rosto e me encarando, perguntou num tom agressivo:
–“Virou? A senhora não teve uma formação profissional? Não cursou a Universidade?“ – Levantou o queixo e retomou a postura profissional tensa. As rugas de expressão fazendo fendas no rosto.
– Não! – Irritada com a mudança do personagem, parti pra defesa– Como tantos outros grandes e geniais, não fiz! Stefan Sagmeister, Hans Donner (ui!), Neville Brody….– Fui falando qualquer nome de designer que me vinha em mente.
– E o senhor? Por acaso fez? – Perguntei num tom irônico.
– Eu completei minha matura brilhantemente, fui o primeiro aluno da Angewandte*, me formei com 23 anos, estou há 15 anos nesta empresa…– Meu sangue subiu, irritada com a súbita arrogância, resolvi ser radical e acabar com esta palhaçada. Levantei bruscamente e, falando alto, parti pra cima dele:
– Então me dá licença por que em termos de criatividade eu dou de dez a zero no senhor! Levanta dai desta cadeira que este lugar é meu! – Ocupei a poltrona que foi cedida pelo perplexo „ex-diretor“ em completo estado de choque.
– Pegue este paninho aqui e comece já a limpar as janelas, até o meio-dia quero ver tudo limpinho, tá? – Coloquei os pés na mesa, recostei-me na confortável poltrona e, sem dar-lhe tempo para reagir, exigi:
– Ah, e da próxima vez faça um cafezinho mais fraco, viu?
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*Kontroller = Fiscal que aparece de vez em quando á paisana pra controlar quem está com tickets válidos de transporte.
*Breakfasteira = Garçonete que serve café da manhã (a palavra é invenção minha mesmo!)
*Kiang= Restaurante chinês „modernoso“
*Angewandte = Renomada universidade de artes de Viena
*Lebenslauf = Curriculo, sendo que Leben = vida, laufen = correr! (vida em corrida!)

Fasching nada!

Fasching nada!
Sai da minha frente que eu quero passar-ar…
Pois o Samba está animado e o que eu quero é sambar!“

Eu sou do Samba e não nego. Sempre fui. Quando éramos pequenas, dona Zilda – minha mãe – fazia questão de montar duas fantasias por ano para mim e minha irmã. Me lembro da Carmen Miranda. Ela costurou uma mini-saia de baianinha com mini-blusa, no turbante frutas de plástico, brincos de argola quase do tamanho da nossa cara que deixava marca no lóbulo da orelha, nos pés um par de tamancos Dr. Schott pintados de dourado. E lá íamos para o matinê do Clube Marajoara. Bandinha tocando, as crianças dançando em círculo. Cresci e troquei os matinês por Arraial do Cabo, Búzios, Salvador. De férias no Brasil até saí numa Escola do Grupo B na Sapucaí.
Nesta época, sempre arrumo um jeito de festejar, não importa aonde eu esteja. Confesso que em Viena é tarefa árdua ter o prazer de encontrar o samba.
Domingão, amigos austríacos também com crianças nos levaram para dar uma olhada no Faschingsumzug (Desfile de Carnaval) de uma cidadezinha perto daqui. Todos muito preocupados comigo:
– Olha, Lina, não vá comparar, é bem diferente…
– Tranquilo, galera, tô acostumada!
Chegando lá, relembrei os matinês da infância. Tinha pirata, árabe, palhaços, princesas, pierrot e colombinas. A única diferença é que ao invés de 5, a faixa etária era de 50 anos…E ao invés de Mineirinho, eles entornavam Schnaps (cachaça).
Imagine como é o carnaval em pleno fevereiro no interior da Áustria: 4 graus, um frio da por…, um vento fud… e nada dessa história de sacanagem, erotismo, nudez (pudera, com um frio destes…). É tipo baile à fantasia mesmo. O austríaco é neste momento uma caricatura dele mesmo! Alguns nem precisam de máscaras, só um efeitosinho aqui e ali e pimba, tá montado o personagem de sí próprio!
Um carro atrás do outro, todo mundo organizadinho, enfileiradinho. E finalmente, depois de muito custo, alcançamos o carro brasileiro. Era uma meia duzia de passistas pingadas. As gostosonas na frente, as nem-tão-gostosonas atrás. O Deejay mandando brasa nos „alalaô“ e „mamãe eu quero“ da vida. As passistas de lábios sorridentes e roxos, dando tudo de sí. Me fez pensar o que seria pior, embaixo do sol de 40 graus ou neste frio de 4? Elas aqui enfrentando o vento e a cara fechadona do público. Dignas heroínas! Completamente rouca, segurando um gurí numa mão e a câmara na outra, fiquei sem saber como dar uma força, dar meu apoio. Chegar até a ala pra mim foi como se tivesse chegado no oásis. No meio do deserto do Sahara, a miragem do que seria um carnaval. Uma maquete feita de rude papier-machê (tipo aquelas que a gente fazia no ginásio pra passar de ano em Geografia). Mas pra quem tá morrendo de „sede“, qualquer sambinha batido na caixa de fósforo vira uma bateria inteira da Viradouro. As decorações de papelão improvisando palmeiras… A „destaque“ em cima do carro com uma calça adidas por baixo e luvas de lã… Meus amigos austríacos preocupados perguntam: „Lina, tá doendo muito?“ Abrí um sorriso, os olhos cheios de água: „Não, gente, tá tudo bem, eu tô legal…tá…“ Daí passou ela quase na minha cara, tipo „tô-nem-aí-quero-é-sambar“, quase nua, solta, cheia de celulite, flácida, disforme, num corpo meio gordinho, tremendo, rodando, uma coisa tão espontânea, tão Brasil, uma bunda sem vergonha de se mostrar em todas as suas verdades estéticas. Uma bunda com Selbstbewüßtsein (segura de sí), em outras palavras, uma bunda bem resolvida. Naquele desfile no quinto dos infernos da Europa na porr.. do frio, ela reinava absoluta na avenida, tipo num tem pra ninguém! Eu fiquei impressionada com aquilo. Só dava ela no pedaço… Uma coisa é ver bunda por todos os lados. Bunda morena, mulata. Bunda redonda, perfeita. Bunda caída, desfigurada. Bunda famosa, bunda anônima. Outra coisa é ver uma única bunda no quinto dos infernos da Europa na porr.. do frio, no meio do povão agasalhado e de cara fechada (sorrir no frio dói os dentes!). Ali ela tomava conta de tudo. Alí não tinha Paes, Araújo nem Massafera, ela era a única, não tinha nenhuma outra (bunda-)concorrente, Ela era um Extra-terrestre na Constelação local. A única bunda a se mostrar plenamente, completamente…uma bunda digna de coragem, cheia de identidade, sem paranóias nem pudores, feliz de ser o que é, enfim uma bunda bem Brasil! Enfrentando o vento e a cara fechadona do público, a bunda feliz ia abrindo caminho entre os outros. Quatro graus e a bunda sacudia, um frio da po…e a bunda pulava, um vento fud…e a bunda rodava, o povo pasmo e a bunda sorria…
Eu então, de lá do quinto dos inferno da Europa na porr… do frio do cacet…no maldito do vento na cara, olhando pra ela, a bunda em si, abri um sorriso ao me lembrar daquela canção:
„Isto aqui, Ioiô, é um pouquinho do Brasil, Iaiá…“
Valeu, bunda! Você me fez, daqui do quinto dos infernos, do frio da porr…com esse vento fud…encontrar o samba!

p.s: Notícia de última hora: A ala brasileira ganhou- entre 40 outras alas- o desfile! Dá-lhe, Brasil! Bunda neles!
Foto de Michel Filho, O Globo. No Sambódromo, é claro! Por que euzinha mesma não consegui fotografar a bunda única de lá do quinto dos infernos da Europa pois ela tremia, rodava, pulava…e os meus dedos congelando, o guri berrando, o vento da porr…um frio do cacet…