Tio Orlando e „essa gente“ de olhos azuis

Meu tio de segundo grau é uma mistura de descendência aristocrática decadente com classe média podre alta. Conclusão: merda total! O tipo do cara que diz:

– Brasil tem que voltar a ser uma ditadura! Naquela época é que era bom, tudo funcionava bem. Hoje em dia, essa bagunça democrática só fez os políticos se endinheirarem, e agora tá aí o resultado: uma baderna total. Ai, se os militares estivessem no poder, davam um jeito nesses vândalos rapidinho.

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Maria tá chegando!

maria tá chegando!

não conheço maria.
maria me achou no blog.
maria vem pra viena.
maria quer dicas, quer amigos, quer saber.
maria tem medos.
medo do frio, da língua alemã, medo da própria coragem de pedir demissão e arriscar uma vida nova com um estrangeiro.
maria tá apaixonada.
história de amor contada em helvética.

maria tá chegando!
vai trocar o posto 9 pelo adria bar.
o calor pelo frio.
o vertraut pelo unbekannt.
o confiável pelo desconhecido.

maria virou a página e, como se passasse de ano na escola, comprou um caderno novinho.
Ali, maria vai escrever uma nova história.
a mesma vida numa nova vida.

e, daqui a 10 anos, o que será que maria será?
maria vai brigar também pela vez na fila do anker?
maria vai curtir andar pelas ruas da cidade sozinha à noite sem medo.
maria vai aprender a falar zwetschen?
maria vai ter que entender que o feminino vira masculino e que a vida continua.
comer neve? cair do ski?
maria vai se ver desfigurada, nua e com labirintite no espelho.
sentar no metrô e chorar por nada…
maria vai amar o previsível, o tempo, o ônibus, o amanhã, a hora marcada com três meses de antecedência.
maria vai tomar menos banho?

maria tá chegando!
maria vai gritar de alegria e o estrangeiro vai se apaixonar ainda mais: „como ela é espontânea!“
maria vai voltar da rua e gritar de raiva: „não entendo, não entendo, não entendo!“
maria vai gritar de prazer por ter achado um homem tão bom e romântico.

vai ligar pra mãe e falar que tá tudo bem… mesmo?
maria não vai saber o que dizer.
alguma coisa vai mudar dentro de maria e ela não saberá o que, nem pra que, nem como.
ou será que maria vai se fechar e continuar lutando por acreditar que estrangeiros são eles e nunca ela mesma?
maria vai ter que entender o esquema da chave para o elevador.
iiih, maria vai se embananar toda na caixa do supermercado com as compras.
vai lavar a alma no danúbio!
será que vai comer gulasch de madrugada no ansengruber?
passear no „baixo nasch“…
… comprar velharias no flohmarkt.
rir com as bichas no savoy?

maria vai entender por que justiça social é melhor do que bondade individual…
ah, mas maria vai perder uma outra virgindade!
porque maria vai aprender na marra que ser inocente é diferente de ser ingênuo
maria naiv, maria unschuldig
maria vai pirar quando a agredirem com sorriso nos lábios
porque a emoção pode ser contrária à mensagem
e o que importa são só as palavras
ai, maria não vai mais poder mandar tomar no cu por amor

maria tá chegando!
quantas marias já chegaram?
muitas. cada uma com seus apocalipses próprios, neu starts pessoais.
marias trazidas por amores impossíveis.
homens que querem o exótico, o desconhecido, no meio do seu velho e manjado mundo.
sem pegar dengue, sem ser assaltado, sem sentir a vida pulsar nas veias nem a adrenalina corroer a razão.
eles, os trazedores de marias!
será que lá o contrário também existe?
marias trazedoras?

maria tá chegando!
maria vai brigar com ele e vai querer voltar.
maria vai voltar pra de onde veio.
será?
maria volta mas só sabe pra onde.
não sabe mais pra quê.
às vezes ela vai só até a esquina.
só pra ir. só pra voltar.
na igreja, casando, ele vai cutucá-la na hora que ela tiver que falar sim.
maria vai engravidar e, na hora de parir, vai xingar de dor em português.
maria vem, maria fica.
maria fica?

deixa chegar, willkommen maria!
quanto tempo maria vai demorar pra realmente chegar, inteira?
e quanto de maria vai sobrar então?
e qual maria maria vai ser?
maria?
tá chegando!

… lavar a alma no Danúbio…
 
 
 

Anéis cheios de dedos, colares cheios de pescoços.

No momento em que a forcei a me dar a mão, percebi por que consigo viver aqui. Meu egocentrismo não me deixa enxergar o outro como ele é, ou como ele gostaria de ser visto, mas, sim, como eu quero. E, por isso, minha mão permaneceu firme, estendida até ser recompensada com o aperto.

Escritórios modernos esterilizados geram trabalhadores esterilizados. No chão, nas paredes, nas mesas, só existe petróleo em forma de plástico. Alguns, mais sensíveis, não aguentam tanta falta de vida e trazem plantas, decoram com bichinhos de pelúcia, fotos das crianças… Mas esta não, esta dava pra perceber que era do tipo superorganizada, lápis e canetas fazendo uma fileira certinha na mesa, segurando o desfile: de um lado o apontador, do outro a borracha.

Ela tinha as raízes em algum lugar próximas às minhas. Só se via pelos olhos. As pálpebras faziam aquela curvinha doce, tipicamente latino-americana. No mais, era a eficiência em pessoa. A funcionária correta, certinha. Só uma coisa não se encaixava na cena: para cada anel, vários dedos; para cada colar, vários pescoços. E isso a tornava bonita, até linda. Porque era imperfeita, porque, por trás de tanta eficiência e perfeição, os anéis teimavam em ter mais dedos do que poderiam, e os colares, mais pescoços do que era cabível. Nervosa, procurava no computador um „remédio“ pra essa paciente tão exótica. Depois de uma rápida análise computadorial, ela vira seu tronco, que se separava do meu por uma mesa, e diz, decisiva:

– A senhora está desempregada faz muito tempo e precisa, a partir, de agora fazer um curso… qualquer curso. Diga: do que a senhora precisa? – Os anéis e colares debochavam, me encarando: „Isso mesmo, bota um curso nela, um curso pra concurso.“

– Tipografia seria bom… Mas tem que ser em MacIntosh.

– Tipo o quê?! Mac was? – Ela procura desesperadamente no computador por uma solução. Alguém já tentou explicar, em dois minutos, pra um(a) funcionário/a público/a do Ministério do Trabalho austríaco por que MacIntosh, ou o que significa layout?

– Ah, tá aqui, achei a solução: Deutschkurs, curso de alemão! Não é ótimo, senhora… senhora… – Ela procura rapidamente pelo meu nome no computador. – Senhora Mares?

– É, é… acho que sim. – respondi, meio surpresa com o novo destino.

No Brasil, quando você tá desempregado, não consegue pagar o aluguel, corre pra mamãe, papai, volta pra casa deles, e eles te mandam fazer um desses cursos pra concurso. Na Áustria, a mamãe e o papai se chamam Arbeitsamt, Secretaria do Trabalho, que funciona no mesmo esquema: te dão uma mesadinha (salário-desemprego) e te mandam ir à luta. Daí, passam uns meses e você não consegue emprego, te empurram um cursinho qualquer. Dessa forma, você não aparece nas estatísticas como desempregado, e o partido regente enche a boca pra dizer que existem cada vez menos desemprego no país. E nada melhor do que um cursinho de alemão pra uma Ausländerin, uma estrangeira.

Enquanto ela passava os anéis em cima do papel, me explicando aonde ir, eu pensava na solução tão repentina tomada por colares e pescoços alheios. Depois de vinte anos de Áustria, de novo um cursinho de alemão. Mas vai ser bom, Lina, afinal até hoje você esquece que a palavra “amor” é feminina, assim como “trabalho”, “sol”… Ai, pra quesaber tudo isso se sei amar, ralar e procurar desesperadamente pelo sol nos dias cinza, sem encontrar? Ela se irrita com meu olhar distante.

– A senhora está prestando atenção? – Trim, trim, os colares em forma de cascavel: „Taca um curso nela, um curso pra concurso, ssss, ssss.“

– Claro, claro. Estou entendendo tudo.

Ela leva a folha de papel ofício com o logo da repartição pra mais perto do meu rosto. Anéis debochados, bailando sobre o papel, me apontavam o dever de casa. Seus olhos impacientes pedindo atenção. Endereço, hora, data…

– A senhora entendeu tudo? Senhora… Senhora… – Mais uma olhadinha no computador (ou melhor chamar de oráculo?). – Senhora Mares?

– Sim, sim. – Levantei-me e, num gesto puramente intuitivo, estendi a mão pra agradecer, me despedir, coisa normal mesmo, sorriso nos lábios, espontânea eu fui. Ela já tinha se virado para o computador, eu era um caso encerrado e já tinha liberado seu Aufwiedersehen, tchau. O próximo „paciente“ já irrompendo a cena. Mas, entre mim e o próximo, tinha aquela mão, a minha mão estendida na cara dela. Uma mão espontânea, amigável, agradecida. Ela não teve escolha nem tempo pra pensar. Estendeu a mão pra mim. Ainda a olhei nos olhos enquanto as mãos se uniam. Sorrisos, tatos, impressões entrelaçadas, digitais. No meio de tanta esterilidade, algo orgânico acontecendo. Colares tilintaram, anéis se esfregaram, e ela, em fração de segundos, foi outra, foi mais natural por trás da maquiagem e dos apetrechos, até sorriu. E, no segundo seguinte, ela se toca de que não fazia parte do trabalho dela, de que não era normal apertar a mão de qualquer requerido/a. Mas não dei chance de ela se irritar. Me permitindo uma comparação perversa, é tipo quando você não tá a fim, mas a figura te pega de um jeito, e com um jeito, que a gente,sem perceber como, já gozou. Pois, acabado o aperto, ela ficou lá, com a mão parada, me olhando com cara de besta,enquanto eu dava passagem para o próximo. A expressão no rosto maquiado era uma confusão de emoções: bem-estar, inquietude, espanto. Também me espantei com essa fração de segundos que sucedeu a trepada. Retomei minha postura mais rapidamente, enquanto ela ficou ali, parada, com aquela mão gozada. Meio sem graça, meio perdida, pra, logo depois, voltar a ter as feições duras, a coluna travada, as pulseiras voltaram a ter mil braços, os brincos cheios de orelhas. Recomposta, ajeitou-se na cadeira, colares fazendo ssss, ssss. Travou a boca pra falar um „Pois não?“ ao próximo, enquanto eu fechava a porta de vidro, levando comigo o tilintar dos pescoços. Ssss, ssss.