Curriculum (mais que) Vital!

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Me sinto tomando o ônibus 30 para o centro da cidade. Exames do vestibular. Será que estudei tudo mesmo? Torço pra conseguir lugar sentada e poder fazer uma rápida revisão da matéria. Ele chegava como sempre barulhento e soltando fumaça preta. Tlin, tlin. O trocador de testa suada e longas unhas no dedo mindinho, bate com uma moeda na barra de metal avisando assim ao motorista que pode partir. O ônibus arranca ainda de portas abertas. Bruuummmm. Mas não! Corta! O cenário é outro, só a sensação é a mesma. O ônibus chega no minuto exato. Silencioso, „inclina-se“ para a calçada abrindo três portas ao mesmo tempo. O sensor eletrônico fecha as portas automaticamente antes do veículo partir. Todos encontram lugar para sentar. Viena, um porto seguro num mar agitado.

Aproveito para me preparar, tiro os papéis de dentro da bolsa enquanto penso: Será que não esqueci nada? Onde parei? Quem sou eu? E começo a estudar para a „prova“:
1983_ Completa o 2 grau no colégio Gay-Lussac, Niterói
O cara com certeza vai franzir a cara e soltar um “ Wie bitte, Gay?“ (= Como assim? Gay?) seguido de um: „Nit, was?“ (= Nit o quê?) Vou ter que dar minha respostinha padrão: Sabe aquela paisagem linda que você vê do Rio? o Pão de Açúcar, o Corcovado? A foto foi tirada lá, sabe? Mas não precisa virar de costas…E quanto ao Gay, que eu saiba, era um biólogo famoso)

Desço do ônibus em direção ao metrô. A passagem subterrânea parece um grande salão, pessoas se dirigindo para todos os lados. Me imagino numa pista de esqui, desvio dos passantes em passo lento como se fossem bandeirinhas fincadas na neve. Zum, zip, zum! Alguns me olham irritados: „Que valsa é essa?“ Sim, por quê o vienês não anda nem corre, ele valsa pelas ruas. Escadas rolantes me levam para aonde eu quiser. Viena, um útero protetor num corpo maltratado.
Esperando o metrô, olho para a frente, o placar televisivo mostra a lua rodando: „Quem tem tendência á melancolia, deve fazer passeios ao ar livre hoje. Olho para cima, placar eletrônico avisa que em dois minutos o metrô chega. Viena, um berço limpo e acolchoado numa casa abandonada.
„Zurücktreten!“ (=Afastem-se) O grito vindo do alto-falante corta meus pensamentos. Entro no trem. Cheiro de salsicha no ar. Todos sérios. O(a) Austríaco(a) antes de sair de casa, tira o sorriso, guarda no bolso e só tira em casos de extrema necessidade. „Zug fährt ab!“ (=O trem vai partir) Faltam duas estações, será que chegarei na hora? Se tudo aqui é tão pontual, que desculpas darei para o atraso? Volto a estudar para a „prova“.
1983/84_ Presta vestibular para Ciencias Sociais e passa para o segundo semestre.
Lá vem a perguntinha: – „E nestes 6 meses a senhora fez o que?“ – Ficava o dia inteiro de bobeira em Itaquá, estiradona no sol, galera manera, autos banhos de mar, comia um sanduba do Marcelo natural, dava um rolé na prainha e…Pára, Lina, pára! Assim você não consegue nem emprego de faxineira pra limpar janela no inverno!
„Stephansplatz!“ Caraca, tenho que descer! Coloco a papelada toda dentro do portfolio, páginas da minha vida, desarrumadas, soltas…Será que não esqueci nada? Onde parei? Quem sou eu?
Conexão linha laranja. Esqueci de bater o ticket, será que tem Kontroller* na área? Vagão vazio, lugar á escolher, amo Viena.
1984_ Cursa a Escola de Teatro Martins Pena no Rio de Janeiro.
Já sei o que ele vai quere saber: „Não concluiu por quê?“ Por quê era um bando de chatos, rasta-panos, sei lá, cansei, virei New-Wave, pirei… Sabe aquela música: „Um belo dia resolvi mudar(…), me libertei daquela vida vulgar, que eu levava estando junto á vocêê!“…..Tudo bem, eu aceito limpar as janelas mas só as partes de dentro!
Daí mudei mesmo:
1985_ Curso de modelo e manequim na Socila.
1985/86_ Curso de modelo e manequim no Senac.
Lina, errar uma vez é humano mas duas…Bem, isto prova como sou original. As outras são modelos e viram atrizes, eu era atriz e virei modelo!
Ele vai levantar as sombrancelhas: „Aber von Sozialwissenschaftlerin zum Schauspielerei dann Model???“ (= De socióloga para atriz e depois Modelo?) Ok, ok, eu limpo as janelas de fora também!
Posso aqui dar uma resposta despojada tipo: „Pro Senhor entender: naquela época mulher alta e magra, ou era jogadora de basquete ou manequim!“ Acompanhando um sorrisinho pra dar uma descontraída no clima…
As escadas rolantes do metrô me conduzem em ângulo ascendente para um céu azul que se não fosse o povo todo agasalhado eu iria intuitivamente pensar um hoje-vai-dar-praia. Ao invés disso, a escada me joga na rua e o vento frio bate na cara me fazendo cair na real. Odeio Viena.
Entro no luxuoso prédio. Ajeito os papéis do currículo dentro do Portfolio enquanto a recepcionista liga para o diretor criativo:
– Senhora Mares está aqui para entrevista ao cargo de designer.
Terceiro andar. Enquanto subo as escadas, os anos passam em revisão. Cada degrau, cada lembrança…Será que não esqueci nada? Onde parei? Quem sou eu?
1986_ Mudança para São Paulo. Trabalha como modelo e manequim pela agência Special.
Vinte aninhos e autônoma. Caia na noitada paulistana, Bexiga, Madame Satã, Cais…, durmia um pouquinho, lavava a cara com água gelada e ia para os Castings e Shootings e ninguém nem notava as olheiras… Bons tempos. E como estava bom demais, resolvi mudar de novo:
1987_ Chegada na Europa.
Aí que eu vi com quantos paus se fazem uma canoa – e tô vendo até hoje! Segundo andar. Escuto meu coração bater. Nervosa. Há um mês que esta entrevista está marcada e agora faltando poucos degraus, não consigo me lembrar de tudo o que já fiz, por onde já andei…O que vem agora? Ah, claro:
1988_ Mora em Paris e Londres trabalhando como modelo.
Peraí, Lina, mentira Deus castiga. Correto é tentando trabalhar como modelo. Arrumadeira, Panfleteira, Cozinheira, Breakfasteira*… Nesta fase aqui é mais prático se ele perguntar que tipo de trabalho eu não fiz.
1989_ Mudança para Viena.
Com certeza ele vai fazer aquela perguntinha clássica: „Por quê Viena?“ O Austríaco e seus complexos de inferioridade. Opalá. Acabou os degraus. Levanto meu olhar e deparo com o dito cujo na minha frente.
– Hallo, Frau Mares. Ich bin Schöpferberg. (= Oi, Senhora Mares. Sou Schöpferberg)
O homem elegante de terno caro e perfume um pouco além da conta me estende a mão e um sorriso. Minha primeira impressão foi palpite bicha nível 2 para 1. Explicando: nível 1_ É bicha assumida e resolvida. Não precisa de artifícios fashion para esconder nem mostrar nada. Nível 2_ É bicha e ele mesmo não sabe que é! Com o passar dos anos, sempre tentando tapar o sol com a peneira, acaba virando um assexuado com óculos quadrado de aro grosso e calças acima da cintura. Nível 3_ Não é bicha e só por que não senta de pernas abertas, não fala grosso e não coça o saco, minha arcaica educação latino-americana o julga como tal! Sendo assim, suspirei aliviada, com bichas me sinto daheim (=á vontade, em casa)
Ele me guia através de um corredor comprido até a sua sala, No caminho fez a primeira perguntinha de praxe e a resposta como sempre teve efeito imediato. Ele pára de andar, vira-se para mim, os músculos facias relaxam, o rosto se ilumina. Fecha os olhos e suspira jogando o corpo um pouco para trás enquanto abre os braços para cima como se louvando á Deus e diz com melodia na voz:
– Aus Braaa-siii-lieeen! (= do Braaa-siiil!) Pude escutar os tamborins tocando nos seus neurônios. Vi o contorno do Pão de Açúcar refletidos na sua córnea. Se fosse brasileiro jurava que tinha pego um santo! Qual seria a reação se disesse que sou do Egito? Ou Equador? Sudão? Um dia minto só por curiosidade.
Entramos na sua sala. Me deparo com as janelas empoeiradas e faço uma piadinha pra mim mesma: Ai, Lina, se não rolar como Designer… Sentamos um de frente ao outro. Uma mesa grande nos separa.
Ele, já recuperado do choque Brasil, parte para a segunda óbvia perguntinha:
– Aber warum Wien? Rio ist doch so schön… (= Por que Viena? O Rio é tão lindo…)
Caraca, ele começou o interrogatório justamente onde eu tinha interrompido a minha retrospectiva. E agora? Onde parei? Quem sou eu?
– Por que queria passar o natal com meu primo e fui ficando, ficando…
– Einfach so? 18 jahre? Ele folheava o Lebenslauf (Curriculo) que no meu caso é literalmente uma vida em corrida!* – Langer Besuch, oder? (=Visita longa, né?)
Eu posso também limpar o porão do prédio, vai…
– É… Eu continuei trabalhando como modelo (digo tentando trabalhar) Afinal, – Me ajeitei na cadeira, levantando o queixo e olhando firme para ele – Sou uma mulher persistênte, tenho perseverança! (pra não dizer cabeça dura!) E ao mesmo tempo, fiz cursos de alemão, cozinhei num restaurante Mexicano…
– Aber alles gleichzeitig? (=Tudo isto ao mesmo tempo?)
E ainda dava pra sair depois do batente, dançar no Volksgarten, comer uma Wurst na barraquinha da òpera… Cê num sabe de nada, cumpadi!
– Sim! Como o senhor pode perceber, tenho grande talento para Zeitmanagement…(= administrar o tempo)
Ele não precisa ficar sabendo que as tortilas queimavam, que não passava em casting nenhum por quê engordei horrores comendo linguiça e com a cabeça ainda tonta de Weissgespritz (= Vinho branco + Soda) do balaco anterior, não havia como entender os acusativos, genitivos e todo o resto desta lingua danada…
Ele serviu um cafezinho. Enquanto saboreava o café, ele olhava o tal papel (páginas da vida!) como devorando um crime de suspense. A conversa foi ficando mais informal e eu pra variar abri de novo o livro da minha vida assim tão ingenuamente. Contei do blackmarket loja de discos e bar, onde servia café para os melhores Deejays da cidade, vendia Red Bull nas festas do Gasometer, misturava Cocktails no legendário „Die Bar“ na Sonnenfeldgasse…
– Eu frequentava muito o „Die Bar“– Observou-me por cima das lentes enquanto tomava mais um gole de café. Seu olhar era uma mistura de simpatia e espanto.
– Pois eu sabia que você não me era estranho. ..–O café estava muito forte para o meu gosto. Tentava recordar o que tinha colocado na minha própria vida, digo no papel que já nem me lembro, tantos empregos, tantos países, Onde parei? Quem sou eu?
Ele queria saber mais.
– Você lembra da Freihaus?
– Claro! Era nosso ponto de encontro. Meu primo trabalhava lá…
– O Ja-Bar que só abria ás 5 da manhã e…
– …era a esticadinha obrigatória depois que o „Die Bar“ fechava…– Rimos, cúmplices de um universo chamado Viena anos 90.
Olhava para mim, sorria, olhava para o curriculo entusiasmado. Me senti vendendo um roteiro para filme de aventuras. Mas o que eu vim fazer aqui mesmo? Onde parei? Quem sou eu?
1994_ Estuda Publicidade na Universidade de Viena
– Não conclui por que tinha que trabalhar no Kiang*…
– Kiang? Eu adoro comer lá! – A entrevista (que entrevista?) para emprego (que emprego?) tomou rumos de papo animado. Na ausência do fator bofal (homem heterosexual), não precisei me preoucupar em ser mal entendida com a minha falta de distância e privacidade. Além do quê, a pinta de bicha do cara contribuiu pra uma certa afinidade. Bichas adoráveis, o que seria do mundo sem elas!
–… Fui me virando, fui levando até que um dia falei chega! Comprei um computador e virei Designer…
Ele como se saindo de um transe, acordou no meio do filme. Afastou de repente as taças de café para um canto da mesa, ajeitou os óculos no rosto e me encarando, perguntou num tom agressivo:
–“Virou? A senhora não teve uma formação profissional? Não cursou a Universidade?“ – Levantou o queixo e retomou a postura profissional tensa. As rugas de expressão fazendo fendas no rosto.
– Não! – Irritada com a mudança do personagem, parti pra defesa– Como tantos outros grandes e geniais, não fiz! Stefan Sagmeister, Hans Donner (ui!), Neville Brody….– Fui falando qualquer nome de designer que me vinha em mente.
– E o senhor? Por acaso fez? – Perguntei num tom irônico.
– Eu completei minha matura brilhantemente, fui o primeiro aluno da Angewandte*, me formei com 23 anos, estou há 15 anos nesta empresa…– Meu sangue subiu, irritada com a súbita arrogância, resolvi ser radical e acabar com esta palhaçada. Levantei bruscamente e, falando alto, parti pra cima dele:
– Então me dá licença por que em termos de criatividade eu dou de dez a zero no senhor! Levanta dai desta cadeira que este lugar é meu! – Ocupei a poltrona que foi cedida pelo perplexo „ex-diretor“ em completo estado de choque.
– Pegue este paninho aqui e comece já a limpar as janelas, até o meio-dia quero ver tudo limpinho, tá? – Coloquei os pés na mesa, recostei-me na confortável poltrona e, sem dar-lhe tempo para reagir, exigi:
– Ah, e da próxima vez faça um cafezinho mais fraco, viu?
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*Kontroller = Fiscal que aparece de vez em quando á paisana pra controlar quem está com tickets válidos de transporte.
*Breakfasteira = Garçonete que serve café da manhã (a palavra é invenção minha mesmo!)
*Kiang= Restaurante chinês „modernoso“
*Angewandte = Renomada universidade de artes de Viena
*Lebenslauf = Curriculo, sendo que Leben = vida, laufen = correr! (vida em corrida!)

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