Anéis cheios de dedos, colares cheios de pescoços.

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No momento em que a forcei a me dar a mão, percebi por que consigo viver aqui. Meu egocentrismo não me deixa enxergar o outro como ele é, ou como ele gostaria de ser visto, mas, sim, como eu quero. E, por isso, minha mão permaneceu firme, estendida até ser recompensada com o aperto.

Escritórios modernos esterilizados geram trabalhadores esterilizados. No chão, nas paredes, nas mesas, só existe petróleo em forma de plástico. Alguns, mais sensíveis, não aguentam tanta falta de vida e trazem plantas, decoram com bichinhos de pelúcia, fotos das crianças… Mas esta não, esta dava pra perceber que era do tipo superorganizada, lápis e canetas fazendo uma fileira certinha na mesa, segurando o desfile: de um lado o apontador, do outro a borracha.

Ela tinha as raízes em algum lugar próximas às minhas. Só se via pelos olhos. As pálpebras faziam aquela curvinha doce, tipicamente latino-americana. No mais, era a eficiência em pessoa. A funcionária correta, certinha. Só uma coisa não se encaixava na cena: para cada anel, vários dedos; para cada colar, vários pescoços. E isso a tornava bonita, até linda. Porque era imperfeita, porque, por trás de tanta eficiência e perfeição, os anéis teimavam em ter mais dedos do que poderiam, e os colares, mais pescoços do que era cabível. Nervosa, procurava no computador um „remédio“ pra essa paciente tão exótica. Depois de uma rápida análise computadorial, ela vira seu tronco, que se separava do meu por uma mesa, e diz, decisiva:

– A senhora está desempregada faz muito tempo e precisa, a partir, de agora fazer um curso… qualquer curso. Diga: do que a senhora precisa? – Os anéis e colares debochavam, me encarando: „Isso mesmo, bota um curso nela, um curso pra concurso.“

– Tipografia seria bom… Mas tem que ser em MacIntosh.

– Tipo o quê?! Mac was? – Ela procura desesperadamente no computador por uma solução. Alguém já tentou explicar, em dois minutos, pra um(a) funcionário/a público/a do Ministério do Trabalho austríaco por que MacIntosh, ou o que significa layout?

– Ah, tá aqui, achei a solução: Deutschkurs, curso de alemão! Não é ótimo, senhora… senhora… – Ela procura rapidamente pelo meu nome no computador. – Senhora Mares?

– É, é… acho que sim. – respondi, meio surpresa com o novo destino.

No Brasil, quando você tá desempregado, não consegue pagar o aluguel, corre pra mamãe, papai, volta pra casa deles, e eles te mandam fazer um desses cursos pra concurso. Na Áustria, a mamãe e o papai se chamam Arbeitsamt, Secretaria do Trabalho, que funciona no mesmo esquema: te dão uma mesadinha (salário-desemprego) e te mandam ir à luta. Daí, passam uns meses e você não consegue emprego, te empurram um cursinho qualquer. Dessa forma, você não aparece nas estatísticas como desempregado, e o partido regente enche a boca pra dizer que existem cada vez menos desemprego no país. E nada melhor do que um cursinho de alemão pra uma Ausländerin, uma estrangeira.

Enquanto ela passava os anéis em cima do papel, me explicando aonde ir, eu pensava na solução tão repentina tomada por colares e pescoços alheios. Depois de vinte anos de Áustria, de novo um cursinho de alemão. Mas vai ser bom, Lina, afinal até hoje você esquece que a palavra “amor” é feminina, assim como “trabalho”, “sol”… Ai, pra quesaber tudo isso se sei amar, ralar e procurar desesperadamente pelo sol nos dias cinza, sem encontrar? Ela se irrita com meu olhar distante.

– A senhora está prestando atenção? – Trim, trim, os colares em forma de cascavel: „Taca um curso nela, um curso pra concurso, ssss, ssss.“

– Claro, claro. Estou entendendo tudo.

Ela leva a folha de papel ofício com o logo da repartição pra mais perto do meu rosto. Anéis debochados, bailando sobre o papel, me apontavam o dever de casa. Seus olhos impacientes pedindo atenção. Endereço, hora, data…

– A senhora entendeu tudo? Senhora… Senhora… – Mais uma olhadinha no computador (ou melhor chamar de oráculo?). – Senhora Mares?

– Sim, sim. – Levantei-me e, num gesto puramente intuitivo, estendi a mão pra agradecer, me despedir, coisa normal mesmo, sorriso nos lábios, espontânea eu fui. Ela já tinha se virado para o computador, eu era um caso encerrado e já tinha liberado seu Aufwiedersehen, tchau. O próximo „paciente“ já irrompendo a cena. Mas, entre mim e o próximo, tinha aquela mão, a minha mão estendida na cara dela. Uma mão espontânea, amigável, agradecida. Ela não teve escolha nem tempo pra pensar. Estendeu a mão pra mim. Ainda a olhei nos olhos enquanto as mãos se uniam. Sorrisos, tatos, impressões entrelaçadas, digitais. No meio de tanta esterilidade, algo orgânico acontecendo. Colares tilintaram, anéis se esfregaram, e ela, em fração de segundos, foi outra, foi mais natural por trás da maquiagem e dos apetrechos, até sorriu. E, no segundo seguinte, ela se toca de que não fazia parte do trabalho dela, de que não era normal apertar a mão de qualquer requerido/a. Mas não dei chance de ela se irritar. Me permitindo uma comparação perversa, é tipo quando você não tá a fim, mas a figura te pega de um jeito, e com um jeito, que a gente,sem perceber como, já gozou. Pois, acabado o aperto, ela ficou lá, com a mão parada, me olhando com cara de besta,enquanto eu dava passagem para o próximo. A expressão no rosto maquiado era uma confusão de emoções: bem-estar, inquietude, espanto. Também me espantei com essa fração de segundos que sucedeu a trepada. Retomei minha postura mais rapidamente, enquanto ela ficou ali, parada, com aquela mão gozada. Meio sem graça, meio perdida, pra, logo depois, voltar a ter as feições duras, a coluna travada, as pulseiras voltaram a ter mil braços, os brincos cheios de orelhas. Recomposta, ajeitou-se na cadeira, colares fazendo ssss, ssss. Travou a boca pra falar um „Pois não?“ ao próximo, enquanto eu fechava a porta de vidro, levando comigo o tilintar dos pescoços. Ssss, ssss.