O duelo das desterradas

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Na penteadeira

Eu a via através do espelho de aumento. Olhos esbugalhados, órbitas em evidência. Ela passava rímel e cada cílio disparava uma frase. “Antes de botar pra dormir, tem que escovar os dentes, colocar o pijama…”.
Cheiro de alho saindo pela boca, “…Mas antes pergunta se não quer comer nada”. Quando eu cheguei ela ainda engolia às pressas um prato de macarrão. Falava sem parar. Andava pela casa, catava lenços largados, sapatos pelos cantos, casacos pendurados. A casa, uma bagunça só. Com certeza é a cara dela esta desordem.
Será que não vai passar nem um perfuminho pra disfarçar esse fedor de alho?

Esta pelo menos acertou chegar sem eu ter que rebocar da esquina. Porque muitas não conseguem nem achar o prédio. Acham que o número 26 de um lado da rua tem que estar bem na frentinha do 27 e desistem depois de verem que o 26 tá de cara com o 34… Mas esta não, nível bom, nível bom. Formada ainda por cima. Deve ter se apavorado com o meu jeito e o meu bafo de alho. Foda-se. Tô pagando e caro por hora pra ficar mais da metade do tempo vendo tv ou dormindo. Ainda bem que dei bastante coisa pra ela fazer. Dar banho nos “pintos“, fazer mingau, mixto quente, nescau, botar pijama, escovar os dentes, ler estorinhas, botar pra dormir. Cê pensa que é mole, fofa? Filho é ralação. Esta então que veio “trazida”não sabe ainda o que é ralar no velho mundo. Ainda não mergulhou na água gelada da realidade alpina. Já chega com um teto sobre a cabeça e o aquecedor ligado…

No corredor
Vou enfiar estas crianças na cama às 8 da noite e acabar de ler meu livro. Que país é esse que eu fui arrumar pra viver? Maldito dia que esse homem me tirou de lá. De lá de aonde eu vim pra cair no meio destas pessoas de raízes arrancadas, de frases entonadas com melodias estranhas… Uma gente desbotada pela falta de origem. Que nota é esta, minha santa? Que sotaque é este?
Como assim ela não percebeu que eu sou carioca? Da clara mas sou, ora! Tudo bem que o sotaque é esquisito e meus filhos falam “eu querro um homem-arranha” mas tá no sangue, gata. Será que eu não me demoro mais nas vogais? Será que não sentem mais as ondas quebrando na melodia do meu “E aííííííí? Tudo “beeeeeiiimmm”?” Achar que eu sou do sul? Com samba no pé e melanina abundante no sangue? Viajou geral!
No quarto das crianças
Estas crianças tem cara de serem levadas… Bom, ainda bem que pelo menos a teoria eu tenho, né? Analisei todas as experiências de Piaget, conclui a faculdade com Honor e me aparece um austríaco pra me arrancar da minha possível brilhante carreira de pesquisadora pedagógica especializada em diferenciamento social e cultural de povos de origem indígena. Se bem que… entre me adentrar na Amazônia, pegar uma febre amarela, dar pra índio que não sabe trepar e comer mandioca o dia inteiro, ou morar na Europa com um bofe gostoso, culto, inteligente e que me come super bem… Acho que fiz a melhor escolha.

Eles nem precisavam de banho porque já tinham tomado ontem. É, só tomam dia sim, dia não. E eu não vou entrar numa de explicar pra alguém que acabou de chegar que tá certo assim porque do contrário, ajuda a aumentar minhas rugas. Sim, ajuda! Imagina, eu ocupadérrima, louca, levar meia hora pra convencer dois pestinhas a entrar na banheira e depois mais meia hora pra convencer de saírem da banheira? Tô fora! Mas não vai dar pra fazer palestra agora sobre a necessidade quase nula de higiene corporal neste frio. Esse povo récem chegado não tem nível pra entender essas coisas.

No banheiro
Sim, já entendi, santa, é só colocar um pouco de sabonete líquido na banheira, enfiar os pintos lá dentro e tirar. Não precisa enxagüar, sei, sei. Vê se isto é jeito de tomar banho! Por sinal esta tá com cara de que só vê água uma vez por semana… Desde que eu cheguei, estou me divertindo em criar uma nova fórmula matemática. Quanto mais tempo o brasileiro mora por estas bandas, menos banho ele toma. É batata! É só perguntar quanto tempo ela já vive aqui.

Tem umas que chegam e passam meses lavando o cabelo todo dia. Até que caem na real que não dá, o cabelo fica uma merda. Os casos mais sérios são as baianas que chegam pra fazer faxina de manhã de banho tomado. Eu deduzia pelo cheiro de sabonete “Dove”: “ Você toma dois banhos por dia!” E a resposta: “Ó, xenti, claro!” Claro? Quando está fazendo menos 5 lá fora? Ok, daqui uns 5 anos a gente conversa.

Na sala
Ela até tem cara de ser uma pessoa interessante mas os anos fora do país estão escancarados nestas rugas de expressão. Como uma colagem meio disforme. Um remendo de culturas, um apanhado de vivências ao vento, uma angústia mal resolvida e a certeza de que antes, antes de tirarmos os pés daquela terra, tudo era mais digerível, palpável… até previsível. Sim, dentro de toda a imprevisão reinante no cosmos Brasil, existe o previsível do ser Brasil. Agora aqui não… Me sinto suspensa. Querendo sem estar, querendo sem poder. A língua estranha, as pessoas no mínimo esquisitas. Bota esquisita nisto, esta aí então…

Ela está ainda tão crua, coitada… Esse sorriso espontâneo, essa simpatia inútil. Dá até pena imaginar ela na fila do mercado, entre rostos carrancudos e cheiros hostis, andando nas ruas numeradas e emplaquetadas e ela no meio tão perdida…

No sofá-cama
Não sabe a que horas vai voltar? Como? Dormir aqui? Não querida, eu não durmo em serviço. Que ousadia! Já começou mal, tá com cara de que vai querer abusar. Bem que me avisaram que não dá certo trabalhar pra brasileiro no exterior.

Qual é o problema de dormir aqui? Odeio gente com frescura. Tá com medo de quê? Eu que não vou falar nada, “cada um é cada um”. Mas isto me quebra. Ter que voltar cedo pra ela poder pegar o metrô. Eu que quase não saio e convenci o marido a dirigir na volta pra eu poder encher a cara…

Na cozinha
Será que tem comida nesta geladeira? É pedir muito, mas de noite se bater uma fome… Além de livro da próxima vez eu trago comida também.

Será que ela vai atacar a minha geladeira? Nem ofereci a janta… Melhor ficar quieta, ai que horror. Nunca pensei que um dia eu me transformaria nesta pessoa que eu sou! Que considera comida feita com as próprias mãos algo sagrado e valioso. Mas se ela soubesse o trabalho que me deu fazer aquele picadinho, ai, ai, ela me entenderia…

No armário
Uma pulseira, duas, três. Anéis, colares… Nossa, quanto apetrecho! Esta é perua mesmo.

Será que eu pergunto pra ela se tá demais de balangandãs? Melhor não, nem conheço a figura e pelo visual ela faz a linha clean… Iiihh, tô fora. Melhor ficar na minha e fingir que sou super segura. Quatro, cinco…
Acho que rola mais um colar… Ah, e claro: um par de belos brincos!

Na saleta de TV
Vai, vai logo, me deixe sozinha com estes “pintos”. Tão fofos mas… que têm carinha de levados, têm!
Tudo bem, eu entendi toda a palestra, santa, esqueceu que eu sou formada em pedagogia? Na prática o buraco é bem mais embaixo, eu sei e hum… Será que eles vão acabar comigo?

Bom, o resto é com ela. Eu expliquei sobre colocar limites, crianças são como cavalos, na hora que você senta em cima, o bicho já sente se você sabe cavalgar ou não. Portanto é sempre bom ter as rédeas sob controle.
Espero que esta não me chame no meio do cinema chorando como fez uma outra: “Eles sumiram com os meus óculos, eles são impossíveis!”. Hum… Será que ela vai dar conta do recado?

No cabideiro
Nossa, mais de vinte anos morando aqui? Ai, meu deus, será que eu quero? Será que é isto mesmo? Cadê o meu ticket de volta? Cadê o botão revert?

Precisava fazer esta cara como se eu tivesse uma doença contagiosa? Sim, são mais de vinte anos muito bem vividos, fofa. Não troco minha juventude vienense dos anos 90 por nenhuma juventude carioca, e seja lá de qual ano for.

Na porta de saída
Mas depois de se montar toda, se empiriquitar e se maquiar a pessoa me taca um capacete de ciclista na cabeça? Completamente sem noção esta mulher. Será que eu vou ficar assim?

Ela nem olhou pra eles direito… Hum, por via das dúvidas vou deixar o celular ligado. Tudo bem que é
formada e tem nível, mas tô achando esta garota completamente sem noção. Será que eu era assim?

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