A vinda, a vida e os limões sem peneiras

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Em memória a Marcelão, grande amigo que deixou muitas saudades

Nós éramos um grupo de brasileiros chegados e se achegando em meados dos anos 80. O endereço, sempre o mesmo. O edifício era de um figurão da UNO que, por algum motivo inexplicável, só alugava para brasileiros. O emprego, também sempre o mesmo. Conseguimos monopolizar a cozinha de um restaurante mexicano muito badalado na época. Significa que: só trabalha aqui quem, além de ser brasileiro, for legal, bacana e passar no nosso casting. O proprietário do restaurante era uma bicha que apelidamos de a „Propriaotária“. Só aparecia no final da noite para receber o lucro.

Tínhamos um poder tão grande sobre o local que alguns garçons, depois de um tempo, aprendiam português. Menos por vontade, mais por necessidade. Ou você acha que algum de nós, recém-chegados, entenderia o que quer dizer um bife mal-passado, nachos sem feijão, mas com mais queijo, salada sem tomate e coisas do tipo em alemão? Sem chance. Eles que aprendam, afinal, na nossa „embaixada“, eles eram a minoria. E ali era o único lugar em que podíamos ser um pouco do que sempre fomos. E só se explica o ser assim quando se está junto de outros seres também assim. Gargalhadas, brigas, bate-bocas, cantadas, fofocas. A gente lutando pra ser a gente mesmo. Num mundo em que ninguém nos entendia, devolvíamos aos clientes o que recebíamos lá fora: um mundo de que não entendíamos nada.

A decisão de empregar um novo conterrâneo era sempre tomada em conjunto por todos nós da cozinha. E ele apareceu por aqui como todos nós. Amigo do irmão do colega do tal. Morando na casa da prima do cunhado da tal e procurando emprego, é lógico. E ela simpatizou assim de cara com o garoto.

Ela era famosa por fazer a melhor guacamole do local. Coisa que não tem segredo nenhum, é só botar uns dois bons dentes de alho pra cada abacate. Limão, sal, tabasco e tá pronto. Mas ela tinha uma mania perigosa. Já haviam reclamado, mas ela teimava em seguir secretamente o mesmo método. Era o seguinte: depois de amassar os abacates e espremer os alhos na tigela grande, ela espremia os limões na mão. Os caroços caíam na massa que, a essa altura, tinha nuances de verde e branco, e ela os catava um por um com os dedos. A peneira para esse fim ficava pendurada bem na frente da cabeça dela. Com a peneira se faria, com toda a certeza, o que ela teimava em fazer com as maiores incertezas: deixar passar somente o caldo do limão, ficando os caroços a salvo na peneira. Salvos das reclamações dos clientes, salvos dos esporros dos garçons. Ela se recusava, teimosa e silenciosamente, a usar o instrumento eficiente de metal: gostava do ritual de catar os caroços. Mas, até então, era um gostar sem explicação, ilúcido. Ela não sabia dizer por que gostava.

E era o dia de eu treiná-lo e testá-lo. No final do expediente, eu informaria a minha „nota“ para os outros colegas. E comecei a fazer minha guacamole. Ele espiou por detrás dos meus ombros, soltou seu sorriso largo, e disse:

– Você faz igual a mim! Eu também não uso o coador. Eu cato os caroços um por um.

– Jura? – Me virei, enxugando as mãos no avental e emparelhando meu sorriso com o dele. Cumplicidade.

Continuei fazendo a guacamole e filosofando muda. Sim, cozinheiros também são filósofos. Ele gosta de ser imprevisível. Ele despreza o óbvio, o seguro e o firme, o banal. Ele gosta do inesperado, como eu. E do perigo…

Acabado o expediente, o garoto se despediu, e chegaram os outros colegas de trabalho para a reunião cujo tema era decidir o futuro do novo cara. Nós, os embaixadores poderosos, „donos“ de um dos poucos trabalhos possíveis na cidade, avaliando mais um alguém que acabou de chegar.

Acomodamo-nos nas mesas onde antes sentaram os que agora estariam em casa ou numa boate peidando os produtos produzidos por nós. Acendemos nossos cigarros e saboreamos o primeiro gole de nossa bem-merecida Krügerl, cerveja num copo de meio litro. E nem bem esperei alguém falar. Fui logo levantando a voz e explicando o meu voto:

– Ele espreme o limão sem usar o coador. Ele é um dos nossos. Ele fica!

* Krügerl = Copo de Cerveja de meio litro.

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