Tio Orlando e „essa gente“ de olhos azuis

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Meu tio de segundo grau é uma mistura de descendência aristocrática decadente com classe média podre alta. Conclusão: merda total! O tipo do cara que diz:

– Brasil tem que voltar a ser uma ditadura! Naquela época é que era bom, tudo funcionava bem. Hoje em dia, essa bagunça democrática só fez os políticos se endinheirarem, e agora tá aí o resultado: uma baderna total. Ai, se os militares estivessem no poder, davam um jeito nesses vândalos rapidinho.

E, para falar dos menos abastados, titio se refere a essas pessoas simplesmente com um „essa gente“. „Essa gente que não quer trabalhar, que vive de Bolsa Família enquanto ganha por fora…“ Quando eu pergunto o que ele quer dizer com „essa gente“, tiozinho se irrita:

– Pobres, minha filha, pobres. Essa massa que só pensa em pedir, pedir, pedir… Que usam o dinheiro do Bolsa Família pra comprar cachaça, que moram em favelas e não pagam IPTU nem luz…

Eu fico ouvindo o discurso e pensando quem eu – que nasci classe média com empregada à disposição around the clock and around myself – seria hoje se não tivesse vindo para a Europa? Como tio Orlando talvez? Será que a faculdade de Sociologia na PUC teria me salvado dessa mentalidade à la Senhora dos Absurdos? E se tio Orlando tivesse nascido aqui? Não seria um desses que gritam „Fora, estrangeiros!“ e votam nos radicais de direita? Li que a maioria dos eleitores de direita tem pouca escolaridade e simpatizam com as ideias direitistas por serem mais simples de entender. Claro, vai sentar e explicar para tio Orlando sobre direitos humanos, liberdade de expressão, igualdade social etc.

– Drogados? Cadeia neles. Pedófilos? Castração neles. Baderneiros? Porrada neles!

É lógico que bato de frente todas as vezes que converso com ele. Mas a escrotidão mora em qualquer alma humana… Veja bem: eu passo 11 meses por ano cansando a vista no computador, lidando com clientes exigentes, limpando cocô de criança, ariando panelas, empurrando carrinho de compras e chego, então, finalmente de férias, no Brasil. Tio Orlando nos recebe de braços abertos com cervejinha gelada na bandeja (lógico que não é servida por ele, mas, sim, por uma “dessa gente“), jardim maneiro pacas… Aaaah, só dá pra soltar um: demorô! O ser humano é corrompível, sim. E Deus há de perdoar quando a corrupção vem acompanhada de um pastelzinho de queijo e um mergulho na piscina rodeada de „grama bacana“ (cortada por „essa gente“, óbvio).

E, também, tem mais… depois de muitos anos – décadas até – morando no „velho mundo“, eu estou caindo numa real menos utópica. Depois de passar da fase do deslumbramento, minha lua de mel com uma Europa socialista, igualitária e solidária é coisa do passado. Ainda mais com a Áustria, que enche a boca pra dizer que é um país neutro. País neutro que vende armas pra qualquer rebeliãozinha no Oriente Médio é meu cu. País justo que oferece roupas a preço de banana feitas à base de chicotes no leste do mundo é meu cu. País ecológico que está investindo 300 milhões de Euros em Belo Monte é também meu cu. É claro que merda não se faz dentro de casa, a merda é exportada, bem-embalada e cheirosa. O sangue e a miséria que ela produziu ficou lá longe, bem longe…

Então, já que meu discurso de ex-brasileira-neoeuropéia não se sustentava mais nos meus princípios, passei a até ver uma certa autenticidade na escrotice de tio Orlando. Afinal, ele explorava quem estava debaixo dos seus próprios olhos: empregadas, jardineiros, cozinheiras, motoristas… E não uma vítima anônima e impalpável, que se escondia atrás das camisetas da Buenoton, ou da energia que ligava a geladeira, ou dos rebeldes sem nome mortos em conflitos com armas made in Austria.

Titio foi falando, e eu fui deixando:

– Cê acredita que outro dia procurei empregada, e apareceu uma que foi logo dizendo: eu não trabalho aos sábados e domingos, chego só às 9h e saio às 18h, preciso de uma hora de almoço, quero carteira assinada, quatro semanas de férias pagas…

Na mesma hora, eu quis soltar um „Normalíssimo, né, tio?“, mas ele estava empolgadérrimo, e eu com a cervejinha na mão à beira da piscina, aquele sol todo me benzendo, corrompidíssima pelas circunstâncias, deixei rolar… Entre goles de Skol e o barulho do pastel crocante, a boca de Tio Orlando triturava o verbo:

– Aí, quando a folgada acabou de falar tudo o que ela exigia, eu perguntei pra ela: „Mas você toca piano? Ah, não? Ah, então não serve!“ Hahahaha! E mandei a safada picar a mula. – Não aguentei e entrei na gargalhada.

– Ai, tio, você não presta! Hahahaha!

Humor aristocrático decadente, de brasão estampado em tecido de chita, misturado com piso de mármore Carrara cafona. Mais sarcástico impossível. Eu, que saí desse universo, volto a ele totalmente cúmplice. E dá-lhe gargalhada!

Passei uma tarde maravilhosa, completamente corrompida pelo meu próprio bem-estar, um porre ideológico às avessas. E, assim, passei também todo o mês de férias em casas de tios, avós, amigos, sendo atendida por „essa gente“ que me passava as roupas, por „essa gente“ que me trazia moqueca, por „essa gente“ que arrumava minha cama… Mais que corrompida, fui corroída pelo bem-estar a preço de salário-mínimo.

Acabada as férias, voltei pra minha realidade austríaca „internamente“ justa. E precisei de novo de uma faxineira. Nessa situação, tio Orlando certamente diria: „País rico é um problema, você contrata alguém e, daqui a pouco, quando se dá conta, a pessoa já se formou, procura um emprego melhor e te deixa na mão! Brasil é bom porque tem gente que nasceu pra isso: servir, cozinhar, limpar…“ Pois é, titio, sem comentários. Entre a sua casa em Camboinhas e o meu apartamento antigo em Viena existem, além do oceano, anos-luz de justiça social. De faxineiras, operários e caixas de supermercado que moram no mesmo bairro que você, e até no mesmo prédio, que sentam do seu lado no encontro de classes porque seus filhos frequentam a mesma escola que os nossos. É, tio Orlando, „essa gente“ aqui tem uma vida mais digna, e grama bacana cada um corta a sua.

Mas limpeza uma vez por semana, por cinco horinhas, eu pago, me dou esse „luxo“.

Só que eu já estava de saco cheio de faxineiras brasileiras. Sim, racista total. Afinal de contas, a comunidade verde-amarela aqui é do tamanho de um pum. Soltou, todo mundo sabe quem foi. E a mulher limpa as minhas sujeiras, sabe o que tem na minha geladeira, o cheiro das minhas comidas, e o pior de tudo: o estado das minhas calcinhas! Aí é foda, todo cuidado é pouco!

Uma amiga austríaca me recomendou uma ucraniana, disse que era muito boa e tal. Resolvi experimentar. Quando abri a porta pra recebê-la, dou de cara com um rostinho meigo, tipo capa da Capricho. Entre a franja loira e o sorriso largo, dois olhos azuis enormes. Pensei: impossível, esta coisinha linda vai querer subir em escada pra limpar teias de aranha, esfregar vaso sanitário e ariar panelas? No way, sem chance! Olho azul redondo brilhava enquanto explicava o que sabia fazer, onde já tinha trabalhado e quando ela poderia começar… Tão entusiasmada, tão cheia de energia. E eu, totalmente atordoada, confrontada pela primeira vez na vida com um exemplar „dessa gente“ versão olhos azuis. Eu, a „liberal total“, sendo preconceituosa às avessas, é isso mesmo? Agarrada nas minhas convicções sociais contraditórias e récem-parida pra uma realidade além da grama aparada servida de bandeja, eu só queria sair dessa situação, passar uma borracha nesse universo de igualdades invertidas que eu nem queria conhecer. Demais pro meu horizonte classe média pseudolegal. Capa Capricho não serve, não podia servir. Com certeza, depois de cinco horas esfregando o chão da cozinha, limpando as janelas e catando 300 mil peças de Lego pelo chão, ela vai picar a mula, e eu vou ter que procurar outra pessoa de novo, explicar tudo de novo e tal… Imagina, uma bonequinha linda desta se ajoelhar e levar o aspirador até ângulos impossíveis e inalcansáveis? Esfregar privada? Ai, não, não!

Capa Capricho não parava de falar: „Eu sei fazer isto e aquilo, eu posso vir qualquer dia, eu quero, eu consigo, eu preciso…“ E passeava pela casa, cozinha, corredores, abajures, mesas, piano. Opa, eu disse piano?

Tio Orlando me veio em mente. Ideia brilhante. Falei fria e seca. Pose de madame com mansão no Morumbi:

– Mas… – Soltei o ar como que cansada, com ironia e desdém no olhar – você toca piano?

E ela arreganhou os olhos. Não foi arregalou. Não me corrija porque eu sei o que eu descrevo. Olhos arreganhados perguntam:

– Como assim?

– Piano, você toca? Caso contrário, não serve! – Eu toda ainda tentando segurar o petecão de quem só compra na Daslu.

– Toco, sim.

Caí dos meus andares imaginários da cobertura da Ataulfo de Paiva:

– O quê?!

– É, eu toco. Eu estou estudando para entrar no conservatório de Viena. Meu pai é músico da orquestra sinfônica da Ucrânia…

– Ju-jura?

– Sim, quer ouvir? – Sem esperar por resposta, sentou ao piano e tocou, tocou, tocou. Trechos de Wagner, Beethoven, Mozart… Capa Capricho terminou, virou-se para mim e perguntou, toda animada:

– E aí, quando você quer que eu comece a faxina?

– …

Agora eram os meus negros olhos que estavam arreganhados… Marquei a faxina pro dia seguinte. Ela foi embora, e eu corri pro telefone para contar ao tio Orlando. Depois que fiz o resumo da epopéia, titio deu gargalhadas:

– Ha, ha. Bem-feito. Você esqueceu que está no berço da cultura mundial e mora na capital internacional da música? Pois bem, aí até faxineira toca piano. Já aqui… esse pessoal… – Titio seguiu metendo o malho „nessa gente“. Afastei o fone do ouvido e olhei pro teto. Eu, burra, acabei de servir um prato cheio pro discurso reacionário do grama-bacana, eu! Ou… peraí, eu, burra? Claro! Meu insight interrompe o monólogo do sr. Orlando:

– Pare, tio, peraí, a culpa foi minha! Eu fiz a pergunta errada. Da próxima vez que eu quiser dispensar uma candidata „estrangeira“, pergunto se ela sabe tocar pandeiro, tamborim ou… sambar! – E desliguei o telefone sem me despedir.

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P.S. Doce surpresa: Natascha limpa que é uma maravilha. Seria páreo duro para a Aparecida que, além de limpar a casa toda e me levar à escola, me ensinou também a sambar! Na vida, nada se perde, nada se repete, tudo se transforma. Semana que vem Natascha começa a dar aulas particulares para Thuthu de… piano, é claro! Sambar eles aprendem é com a mãe mesmo. 🙂

P.P.S. Desejo, num futuro imediato, que „essa gente“ no Brasil tenha as mesmas chances que „essa gente“ tem por aqui. Tio Orlando que se cuide!

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