Abri a porta do prédio enquanto pensava na ferida que ardia em contato com o vento frio. Apesar de fazer três dias que a faca errou o caminho e entrou superficialmente na ponta do meu dedo, demorava pra cicatrizar. Tudo demora pra cicatrizar nesta terra, tudo. Amores e desesperos, tristezas e invernos, dores e apegos.
Na calçada passei por elas, a mãe e a menina. Neste momento a garota deixou cair o picolé no chão e resmungou querendo salvá-lo do solo. Mas a mãe puxou-a pelo braço e esta se deixou levar por que o frio não perdoa a inércia. Meu olhar caiu sobre o picolé no solo, enquanto os pensamentos vagavam pelo dia que teria pela frente. „Acabar o layout da revista, dar uma prensa no estagiário, buscar o menor no Kindergarten, cozinhar o quê hoje? “ Voltei no final da tarde por um outro caminho. No dia seguinte, ao sair de casa me deparei com ele de novo. No primeiro instante não entendi nada, ou não queria acreditar: o picolé continuava ali na calçada, há mais de 24 horas exatamente no mesmo estado térmico do dia anterior: congelado!
Nas profundezas do inverno aquilo foi uma visão surreal e forte demais: É lógico, Lina, isso explica tudo, isso explica ritmo de vida, explica constância de ser das pessoas, explica feridas que demoram pra cicatrizar, explica uma vida racionalézima e um coração cheio de artérias endurecidas de frio. É como se pessoas e emoções não precisassem de refrigeração por que o estado térmico frio existe em toda a parte. E além disto, o frio é um mal necessário para esta vida cheia de confortos, cheia de Gemütlichkeit. Dentro, o paraíso: apartamentos enormes, ambientes aquecidos, pessoas conhecidas e confiáveis. Fora, a gerra: O vento na cara, expressões faciais cravadas de seriedade e mau humor, o desconhecido armado de rudez pronto para o combate verbal.
Sair de casa, abrir e fechar a porta do prédio atrás de si numa operação que dura apenas cinco segundos. E nem sentir mais que entre estes cinco segundos, todos os músculos do corpo se contraem para enfrentar a temperatura exterior.
Um picolé deitado no chão da calçada que depois de 24 horas continua sendo um picolé, explica tudo. Ou quase tudo…