Eu, Aida e toda a geração que não fez porra nenhuma

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O significado de momentos vividos transmuta e transcende em diferentes momentos posteriores. O presente vivido resultará numa posteridade, seja ela de âmbito internacional e eternizada para outros ou para somente um único indivíduo, dono único desse momento e de suas transmutações. 

Os anos 80, em São Paulo, onde eu era figurante na vida deles, e eles figurantes na minha vida.

– Nossa geração não faz porra nenhuma! – Aida gritava entre paredes brancas coladas com sacos de lixo pretos vazios. A gente tinha dado uma festa na nossa casinha de Pinheiros, e ela tinha tido a ideia de forrar as paredes recém-pintadas com os sacos pra não sujar a tinta nova. E os sacos ficaram alguns dias lá, colados, vazios, como lágrimas negras de petróleo escorrendo pelas paredes. A noite anterior no Madame Satã tinha sido uma bosta. O ácido ingerido deu uma onda toda errada. Vi um desses cantores mauricinhos de uma bandinha qualquer se enroscando com alguém no sofá do porão da boate. As paredes negras suavam. Os punks tomavam toda a pista de dança dando socos no ar. Os carecas, do lado de fora, enfiavam porrada na galera, obrigando-nos, com essa trip horrorosa, a continuar dentro do Satã. E, no dia seguinte, a já prometida rebordosa. – O rock, a discoteca, os anos 60, 70. Quanta coisa aconteceu? Uma porrada! – Cheiro de cigarro e bebida evaporada no ar. Ela muito revoltada, continuava a gritar, com sua voz típica de fundo de barril, ainda meio bêbada da noite anterior. Empunhando uma vassoura, bufava enquanto tentava organizar a casa. – Nossa geração é uma bosta! – Na festa de alguns dias atrás, na nossa casinha, vieram alguns amigos que tinham uma banda de rock. A própria Aida foi empresária de um desses grupos. Uma galera que vinha de Brasília e se acomodava pelo Bexiga. Fazia-se o de sempre, dançava-se The Cure, The Smiths, e tomavam-se as drogas disponíveis conforme a disposição financeira de cada um. E vivia-se em busca de algo a mais. – A gente não faz merda nenhuma. Nem revolução, nem música inovadora, nem nada…

Na semana anterior, um amigo dela de Brasília veio nos visitar. Já devia passar do meio-dia, o cara tinha virado a noite e falava horrores. Quando ele saiu, Aida me encarou pasma.

– Nunca vi esse cara falar assim! Em Brasília ele era supertímido. Impressionante.

Resolvemos dar uma passada no brechó de umas mulheres roqueiras, descolar um visual diferente para o frio que se aproximava. O brechó era lindo, elas eram sérias e gentis, ganhamos descontos. Naquela noite, a gente veria o show de uma banda de punk rock. Aida tinha tido um caso com um dos integrantes, que nos deu os ingressos. Colocamos de novo os modelitos dark, batom negro, muitas tachas e cintos jogados no corpo, e fomos mais uma vez frustradas viver os vazios e insignificantes anos 80… Resumo da ópera: o mauricinho de uma bandinha qualquer que estava se enroscando com alguém no porão do Satã era o Cazuza. Aida, ainda na época em que morava em Brasília, foi empresária do Plebe Rude. Os amigos músicos que vieram à nossa festinha tinham uma banda de rock que se chamava Capital Inicial. O amigo que veio nos visitar e falava horrores era o Renato Russo. As mulheres roqueiras que tinham um brechó eram As Mercenárias. O show da banda de punk rock que vimos de graça era os Titãs. Como eu e Aida poderíamos imaginar que nós estávamos, naqueles dias, ora sombrios, ora de um calor insuportável, vagando por São Paulo, fazendo a história dos anos 80? Tanto a história que ficará para sempre escrita, ouvida e filmada, quanto a nossa própria história, onde os cazuzas, russos e brancos são os figurantes, e nós as protagonistas. Compartilhamos dos mesmos momentos que não serão eternizados, afinal, a verdadeira revolução não será televisionada. Um dia morreremos com o tudo e o todo vividos. Das nossas células entranhadas na terra brotará petróleo pra que se faça sacos de lixo pra que alguém, em algum lugar do tempo e do espaço, use pra cobrir paredes de uma casinha pra dar uma festa pra uma geração insignificante que não faz porra nenhuma.

níveis conforme a disposição financeira de cada um. E vivia-se em busca de algo à mais.
– A gente não faz merda nenhuma. Nem revolução, nem música inovadora, nem nada…
Na semana anterior, um amigo dela de Brasilia veio nos visitar. Já devia passar do meio dia, o cara tinha virado a noite e falava horrores. Quando ele saiu, Alexa me encarou pasma.
– Nunca vi esse cara falar assim! Em Brasília ele era super tímido. Impressionante.
Naquela noite a gente veria o show de uma banda de rock punk. Alexa tinha tido um caso com um dos integrantes que nos deu os ingressos. Colocamos de novo os modelitos dark, batom negro, muitas tachas e cintos jogados no corpo, e fomos mais uma vez frustradas viver os vazios e insignificantes anos 80…

Resumo da ópera: o mauricinho de uma bandinha qualquer que estava comendo alguém no porão do Satã era o Cazuza. Alexa, ainda na época que morava em Brasilia, foi empresária do Plebe Rude. Os amigos músicos que vieram na nossa festinha tinham uma banda de rock que chamava Capital Inicial. O amigo que veio nos visitar e falava horrores era o Renato Russo. A banda de rock punk era os Titãs.
Como eu e Alexa poderíamos imaginar que nós estávamos, naqueles dias, ora sombrios, ora de um calor insuportável, vagando por São Paulo, fazendo a história dos anos 80? Tanto a história que ficará pra sempre escrita, ouvida e filmada, tanto quanto a nossa própria história, onde os cazuzas, russos e brancos são os figurantes, e nós os protagonistas. Compartilhamos dos mesmos momentos que não serão eternizados, afinal a verdadeira revolução não será televisonada. Um dia morreremos com o tudo e o todo vividos. Das nossas células entranhadas na terra brotará petróleo pra que se faça sacos de lixo pra que alguém em algum lugar do tempo e do espaço, use pra cobrir paredes de uma casinha pra dar uma festa pra uma geração insignificante que não faz porra nenhuma.

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