A formiga e a mulher em questão

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Tudo começa com uma forma inofensiva, uma forma formiga. Aparece do nada, aparece tipo formiga.

– Ai, os óculos sumiram!

Formiga ainda inofensiva, pequena, inocente. Ela – a mulher em questão, sem pretensão – sai andando pela casa, procurando. Passa pelo banheiro e vê o cesto enorme de roupas sujas, procura no quarto e descobre poeira debaixo da cama.

– Faxineira danadinha essa!
A formiga começa a crescer. O marido acorda de bom humor e resolve ajudar. O que a irrita mais ainda. Formiga peluda, bem-alimentada, um rato? Ela, já cansada da semana, do mês, do ano, começa a amaldiçoar. Primeiro os próprios óculos.

– Maldito, cadê você?

Formiga fluorescente, pernas de aço, anda com desenvoltura, esbarrando nos móveis do pensamento da mulher. E, desse ponto para o ponto monstro, é um passo. „Essa casa está uma bagunça! Eu não aguento mais!“, ela berra pelos aposentos da alma. Por fora, só bufa. Respira fundo e tenta se controlar.

– São só uns óculos perdidos, são só uns óculos perdidos, nada mais, nada mais…

A formiga começa a murchar, pelos caem. Oxigênio sendo bombado para o cérebro da mulher em questão (ou seria em tensão?). Ela tenta relaxar. Formiga de gato pra rato, de rato pra barata, definhando…

– Tá tudo bem, o dia acabou de começar, eu acabei de levantar… Tá tudo bem, tá tudo bem…

Formiga-barata perdendo o fôlego, os pelos, as penas, o ar… Mas, então, ela lembra que, em dois dias, tem uma gravação.

– E se eu não achar? Com que óculos eu vou?

Formiga inchadaça. Formiga-cachorro, formiga-urso, formiga-monstro.

– Ai, meu Deus, eu tenho tanta coisa pra fazer hoje, e amanhã… E ontem eu nem consegui fazer nada…

Os berros passam do universo mental para o oral, palpável e recheado de altos decibéis:

–  Que bando de livros jogados é este aqui? Catem estes brinquedos já! Eu sempre tenho que fazer tudo!

Formiga já ocupa um aposento inteiro, soltando uma baba verde e fedorenta pela boca. Ela, a mulher em questão, pra lá da tensão, continua a procurar, procurar.

– Eu estou cansada, eu quero paz, eu quero casa arrumada!

A mulher em questão, como um furacão, anda pelos aposentos, caçando vítimas.

Patinetes, bolas de gude, seres humanos, vegetais… Qualquer um serve. A formiga grudada no roupão dela, da mulher-furacão. Formiga enorme, fedorenta, peluda, inchada. O público – filhos e marido – resolve ignorar porque já conhece a performance. Ela se desespera, tudo menos a indiferença! E parte para mais um ataque. A formiga-monstro sobrevoa sua cabeça, soltando grunhidos estridentes.

Fedorenta, peluda, gosmenta.

– Vocês me deixam louca! Eu não tenho sossego, tenho que fazer tudo sozinha!
O marido dá sugestões:

– Talvez os óculos estejam debaixo de um jornal, de um livro?

A pior coisa que pode existir é alguém calmo quando você quer briga.

– É, é, éééé?

Deboche é a solução pra mulher em questão, cheia de tensão. E que, pelo visto, demorará ainda um tempo pra sentir a última palavra da frase anterior sem a letra „n“. E o discurso continua. A formiga-monstro, já imensa, quer sair pelas janelas e portas do apartamento. Ela dá um grito.

– AAAAAH!

O monstro solta um peido horroroso. Ela, a mulher em questão, explodindo tensão, se joga no sofá. O sermão dona-de-casa-mulher-independente-filhos-bagunceiros-marido-calmo-demais ainda comendo solto. Ela se joga onde? Eu falei sofá? Almofadas? O que é isto aqui embaixo? Ela quase fala, mas só pensa:

– Estes fedepês destes óculos tinham que aparecer logo agora! Não, não pode ser! Você, que desejava tanto que eles ficassem desaparecidos por um bom tempo para dar palco a todas as emoções injustamente apoderadas do seu ser… Mas não, acabou o ato! E o pior: você tem que sorrir pra todo mundo e dizer feliz um… Vai, solta, diz logo:

– Achei! Achei!

Ela, a mulher em questão, cheia de tensão, a caminho de aniquilar o „n“ da tal palavra em menção, grita fingindo felicidade. Fingindo? A formiga – pequena, microscópica, nanoscópica – se recolhe nas fendas das paredes do pensamento dela.

– Até a próxima.

A formiga se despede da mulher em questão, involuntária e repentinamente livre de toda a tensão.