A vida é muito simples. Algumas pessoas sabem disso e vivem nessa certeza de que tudo explica, tudo salva, tudo suporta. Berenice veio parar na minha porta, ou melhor dentro da minha casa, das minhas gavetas, nas entranhas do meu vaso sanitário. Berenice, quando surgiu pela primeira vez no saguão do prédio, já trazia sua cara marcada, triste, cansada do destino, da pobreza baiana, da filha grávida aos 12 anos, dos filhos criados sozinhos. Já sabia bem quanto custava não ter dinheiro pra cuidar dos dentes, e quanto custava ter dinheiro pra por azulejos na cozinha (“Opedreiro é cumpadi meu, cobrou só 200 reais!”). Nada novo pra minha vida de classe média brasileira, mas confesso que já tinha me esquecido desse tipo de pobreza material, tão diferente da pobreza mental a qual me acostumei nesta terra de elevado produto nacional bruto. Durante toda a minha infância e juventude, entraram e saíram Berenices na minha vida, de algumas guardo só a lembrança do bolo da tarde, de outra, que roubou um colar da mamãe, de outra, que sumiu sem dizer nada nem levar nada. Mas de muitas sabia muita coisa, talvez até demais. Gostava de ouvir,escondida, os telefonemas para os namorados, e ouvir as histórias que elas contavam, personagens assombrosos que,no meu mundo, eram só mitos, mas, nos delas, era vida real. Outras ouviam rádio alto e lavavam a louça sambando, verdadeiras cabrochas. Uma delas fez questão de me ensinar a sambar: „Joga as cadeira, patroinha, solta as pernas, a bunda, a bunda num pó esquecer!“ Animada, ela jogava as mãos pra cima, e a aguada mistura de detergente Minerva escorria-lhe pelos braços: „Olha só, olha só!“, e chegava com a bunda até o chão e voltava. Essas não faltavam aos ensaios das escolas e economizavam tudo pra fantasia de carnaval. Ainda outras iam sempre à igreja e acreditavam em Deus acima, abaixo e do lado de tudo e todas as coisas! Estupro, abandono, fome, violência. Um outro mundo dentro do meu mundo de escola particular, borracha com cheiro de tutti–frutti, calça Fiorucci e férias em Búzios.
Berenice chegou de cabeça baixa e, quando levantou o olhar pra mim, me veio na cabeça, ironicamente, a cena de Gabriela: Sônia Braga toda descabelada e empoeirada antes de virar cravo e canela. Mas Berenice não se faz de coitada nem escolheu suas rugas tristes no rosto. Por ela, ser já basta, e ser simples já é o máximo que se espera da vida. Só que Berenice não sabe bem o que acontece. Só agora descobriu que veio pra Áustria e não para a Austrália, que não precisa tomar um trem para visitar a Europa, que ela achava que era aqui pertinho. Só que Berenice está feliz, não precisa mais acordar às cinco da manhã e pegar três ônibus pra fazer faxina, cuidar de filhos, netos, da casa dela e da dos outros. Berenice ganha por hora, é bem tratada e só me irrita quando me chama de senhora. Berenice errou o caminho de casa, apesar de eu ter lhe escrito e explicado tudo, papel com letras grandes de forma, burra sou eu que demorei pra sacar a vergonha dela. Fazia listas de tarefas e escrevia os caminhos em vão. Pois Berenice não teve tempo nem dinheiro pra aprender, Berenice não sabe ler. Mas limpa como ninguém. Furacão Berenice. E, dentro de toda essa vida dura, ou justamente pra suportar tanta dureza, Berenice é simples. É tão simples, e o quão de ãos que eu já havia esquecido que a vida é simples, que é possível ser simples, que bom é poder ser simples. Melhor ainda é ser simples como Berenice, por definição, por imposição e ditadura, porque nem se passa pelo processo de decidir, escolher, ponderar, não! Ser simples por ser, tão necessário quanto apenas ser. E, entre uma camisa e outra passada („Quando descobri, ela já tarra grávida de seis meses!“), uma esfregada no chão (“Onti eu vi neve e comi!”), uma cabeça dentro do fogão (“Vixi, tá muito sujo, xé!”), ela me revela as verdades de ser simples. “Era ladrão, virou pregador… levou vários tiros, ele não tem bacia, estes ossos daqui, dona.” – e bota as mãos na cintura enquanto arreganha os olhos pra mim – “Ele tem não, e anda, o cabra!“
E eu, descrente, tentando encontrar uma resposta com meus parcos conhecimentos de medicina e fisica, indago em voz alta: „Mas anda como? Sem bacia?“ Ela, que neste meio tempo já tinha sumido dentro do fogão, retira a cabeçae diz com o sorriso dos inocentes: „Deus!“
A simplicidade é tanta que fico perplexa. Berenice percebe:
“Deus faz ele andar!” E tenta explicar a própria simplicidade: “Eu vi, senhora, eu vi e chorei, e todo mundo chorou lá na igreja, ele tem até um DVD, ele dá palestras, Deus curou ele e faz ele andar, eu acredito…” Ela me observa enquanto fala, tentando „ler“ o que estou pensando. Olhos atentos de jabuticaba, resolve checar o terreno: “A senhora acredita em Deus?”
Pensei em falar que não acredito. Que acredito numa energia, como algo cósmico que nos guia, como força, como algo necessário, pra mim, por ser inexplicável, mas não neste Deus de pregadores e DVDs, de Igreja católica e padres sem excrúpulos. Como o acaso que faz salvar alguém de um perigo, e não o outro que está do lado… e mil coisas… astrologia, tantra, Buda, carmas, a força do pensamento, Reiki e I Ching e… Berenice esperava a resposta, séria, meio desconfiada, concentrada no meu rosto, um tanto ansiosa e um tanto aflita, como se eu tivesse o poder de lançar um tsunami na crença dela. Eu percebi seu temor, abaixei meu olhar em direção ao dela e disse, simples como eu um dia fora, feliz de saber que ainda consigo ser:
„Eu acredito.“
E ela soltou um „Aaah“, sorridente e aliviada, voltou a sumir pra dentro do fogão.
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