Útero, esse antagonista da morte

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A melancolia desta história, neste lindo outono, é uma forma de trabalhar o luto. Escrever sobre a morte de quem meu deu a vida. Zilda faria

hoje oitenta anos. Parabéns, mamãe!

O antagononista da morte não é a vida, mas, sim, o útero.
A vida, se bobear, morre.
O útero não. Vive por décadas, com a única função de gerar vidas.
E chora, todo mês, quando não consegue cumprir sua tarefa.

Útero, esse antagonista da morte

Eu viajei às pressas para o Brasil. Mãe no CTI. Coloquei meia dúzia de roupas na mala, o laptop pra continuar trabalhando de lá, escova de dentes, Rescue gotas, passaporte. Um último torpedo para os garotos antes de entrar no avião. „Se tiverem coriza: Ferrum phosphoricum. Dor de barriga: Nux vomica. Amo vocês.“
Me acomodei no segundo voo e, como era de dia, acabamos conversando muito. Eu, indo ao encontro da mãe entre a vida e a morte. Ela, indo ao encontro de uma inseminação entre a morte e a vida. Mas, dessa vez, ela estava confiante. Sim, da primeira vez o feto não vingou, mas agora eles usariam um método mais moderno e tal. Ela era parteira e me contou que, a cada parto que fazia, chorava. Chorava de felicidade por ter conseguido ajudar no nascimento de mais uma vida, chorava de tristeza por não ter sido o próprio útero que se esvaziava em vida.

Debaixo dos caracóis dos seus cabelos
Uma história pra contar de um mundo tão distante

Eu não muito entendia de medicina, mas muito entendia de perdas. Eu mesma tinha perdido alguns bebês e, por coincidência, os dois filhos que tenho foram gerados no Brasil, na cama de quem agora eu ia ao encontro. Sim, produzidos nas férias, no calor. Dizem que o calor ajuda a fertilizar. Dizem que ajuda, vai saber? A médica também tinha me dado algumas homeopatias. Dizem que ajuda, vai saber? E ajudou. Mas será que foi isso? Ou será que foi por ser que ter e querer mesmo? Vai saber!

Ela queria dar um nome diferente e forte para a filha. Sim, ela tinha certeza de que seria uma menina. „Que tal Zilda?“, perguntei. Ela adorou. „Isso! Forte e diferente. Minha menina se chamará Zilda!“

O marido chegaria dali a algumas semanas e, no dia 6, seria feita a inseminação. Nem sei por que fiquei com essa data na cabeça. E ainda comentei que, então, eu já estaria em Viena novamente.

Ela pegou a conexão para São Paulo, e eu corri para os braços do meu irmão, que me levou direto ao hospital.

Debaixo dos caracóis dos seus cabelos
Um soluço e a vontade de ficar mais um instante

O cordão umbilical que me ligava à minha mãe se estendeu até São Paulo, quando eu saí de casa, com 17 anos, e só foi cortado dentro de um orelhão, numa ligação a cobrar. Depois de ter passado três meses na cidade, liguei para ela e pedi dinheiro. A resposta foi um claro e firme „Não“, com a devida explicação: „Você quis sair de casa, agora se vira!“ Eu a odiei por muitos anos, por esse e tantos outros “nãos” com que ela me presenteou. Mas o que nem eu nem ela sabíamos é que, quanto mais “nãos” dona Zilda me dizia, com mais liberdade ela me presenteava. Mais independente eu queria ser. Por orgulho, por vingança, por ser o único meio de me afirmar como pessoa.

E tive que sentar no divã pra entender os “nãos”, pra encarar meus próprios demônios. Tive que parir eu mesma e criar seres e proferir „nãos“ pra sentir a entoação, o significado, o efeito. Não. Até que não foi mais preciso fugir, dez mil quilômetros e um continente tão desconhecido estão de bom tamanho. Distância segura. Tão segura que, depois de se perder, se despir, se reinventar várias vezes, eis que o cordão volta a existir, regado a boas gargalhadas e carne seca refogada no tabuleiro pra me receber em visita à ex-pátria. Regado a passeios na praia com ela, à minha vontade louca de reaver o passo dessa música, o molejo dos meus quadris (será que ainda requebram?), os decibéis de uma boa gargalhada, de querer acreditar que um dia, sim, voltarei. Férias no Brasil, o retorno de Jedi, a volta do filho pródigo, a visita da velha senhora e todos os outros títulos cafonas que me vierem à cabeça.

Flor, meus pés. Ela em Icaraí, Fusca em Itacoa

– Como é mesmo a letra daquele samba do Salgueiro, mamãe?
– “O sol nascendo vem clarear, o tesouro encantado que o rei mandou buscar…” E o salgueiro entrando na avenida, e o dia tava raiando. Coisa linda de ver, minha filha! A arquibancada de madeira balançava pacas!

Sim, tremia. Zilda, em 1975, tremia. Muito antes de Niemeyer pensar em construir o Sambódromo, você dava gargalhadas contando que a mulher gorda do seu lado fazia xixi num copinho de plástico.

Seguindo minha vida em Viena, o cordão umbilical voltou em forma de cursos de maracatu, de aulas de capoeira, de farinhas de mandioca e goiabada compradas no mercado de produtos exóticos. Ciclo Glauber Rocha no cinema, carnaval com neve… Uma tentativa desesperada de acreditar que ainda sou o que fui, sem deixar de ser o que perdi.

Um dia a areia branca
Seus pés irão tocar…

E a morte sempre foi um passageiro inesperado na vida dela. Porque, às vezes, é preciso que alguém conte só uma coisa, e tem-se, então, a compreenssão infinita da pessoa inteira.

– Minha irmã tinha 10 anos e estava passando mal na cama. Eu fiquei cantando pra ela as modinhas de carnaval enquanto esperava papai chegar. Ele chegou e, quando a viu, falou pra mim: „Vai comprar uma vela por que ela vai morrer.“ E ela morreu mesmo. Por causa de simples vermes. Alguns anos depois, meu irmão começou também a passar mal. Dessa vez eu não esperei por ninguém. Corri até a porta da casa do médico da cidade e esmurrei-a: „Abre a porta, doutor, pelo amor de Deus, meu irmão tá muito doente. Ele precisa de um médico agora. Abre esta porta!“ Eu berrava. E ele veio e medicou teu tio, que tá vivo até hoje.

Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer

E, assim, Zilda aprendeu a não esperar por nada nem por ninguém. Morte e vida severina. Enquanto Zilda fabricava, pela terceira vez, vida no seu útero, morria o cara que fecundou essa vida. Logo ele, que queria uma menina e já tinha até escolhido o nome antes mesmo de conhecer a mãe de seus filhos. Morte e vida zildiana. Nasci de uma rasteira da vida, de um roteiro tão melancólico e triste que decidi optar pela comédia, só pra balancear um pouco e não cair no exagero do que já estava demais.

„Levanta, sacode a poeria e dá a volta por cima!“ Ela gostava dessa música. E não era por acaso.

Passei seis semanas frequentando o CTI todos os dias. Um lugar que não pertence à vida nem à morte, um limbo. Nesse período, tentaram tirá-la do coma induzido. Uma enfermeira cutucou-a para me mostrar o progresso: „Dona Zilda, tua filha está aqui!“ Ela abriu os olhos entre tubos e fios, me catou com a pupila e… sorriu! Naquele momento, eu percebi que não queria estar em nenhum outro lugar do mundo e em nenhum outro tempo. Se eu pudesse, congelaria esse instante, que durou apenas alguns segundos. O instante passou, e ela voltou para sua não existência viva.

E eis que agora me vejo ainda naquelas semanas de limbo, que me jogaram de volta à real: o patologista que não vem. O formulário que não chegou. O material que tem que ser autorizado. A cirurgia que precisa ser adiada por causa de um feriado.

– Não, não dá! Não, não pode.

E agora os „nãos“ vinham da boca de seguradoras incompetentes, de sistemas esdrúxulos, de negligência, ineficácia… não, não, não. Minha mãe partia para a morte e, mais uma vez, a forma de sua partida fazia eu mesma cortar o cordão umbilical com o meu país de origem. Não, não seria possivel voltar a viver no lugar de onde vim, não seria lógico voltar pra onde nada funciona, pra onde se depende somente da boa vontade humana, porque todo o resto é um conjunto de regras e leis e fórmulas ineficientes, absurdas, sem noção…

 E ao se sentir em casa
Sorrindo vai chorar

Minha passagem já estava remarcada. Eu precisava voltar para os meus filhos, não dava pra adiar minha volta de novo. Era um câncer muito agressivo, e ela poderia ficar nessa situação de coma por meses. Mas não. Ela faleceu dois dias antes da minha volta, e foi enterrada no dia seguinte, dia 6. O que tinha mesmo nessa data?

No enterro, me aproximei do caixão aberto para ver a a vida que me deu vida, morta. Coberta de crisântemos brancos, só o rosto à mostra. E, nesse momento, senti uma grande pontada no ventre. A dupla dor que doía no meu coração e no meu útero me pegou de súbito, e as lágrimas não desciam. Contrariando toda a sensatez e tristeza que o momento me exigia, a dor no ventre me trouxe paz e acalanto. Sorri na certeza de que, naquele instante, em alguma clínica paulista, Zilda começou a nascer de novo.

Um dia vou ver você
Chegando num sorriso
Pisando a areia branca
Que é seu paraíso

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Os versos são das músicas „Debaixo dos caracóis dos seus cabelos“, que Roberto Carlos fez para Caetano Veloso enquanto este se encontrava no exílio em Londres, e „Pra não dizer que não falei das flores“, de Geraldo Vandré.