– F-L-E–I–S–C–H!, CARNE, entendeu?
Ela já estava aqui em Viena fazia alguns meses. Aterrizou direto na comunidade brasileira. De lá mesmo se enroscou com um conterrâneo por que afinal, conhecer um frio nunca imaginável em sentir e uma língua nunca pensável em aprender, ainda querer se relacionar com um produto nativo desta terra? Não, seria demais para ela. Pelo menos a buceta deveria continuar provando o produto pátria-amada de sempre. Com o resto do mundo ao seu redor, ela se entendia em inglês. Ficou por um bom tempo só no pacote básico do „Danke, Bitte, Entschuldigung e Aufwiedersehen“ (Obrigado, Por favor, Desculpa, Até a próxima)
Vivendo neste cenário, nunca sentiu uma necessidade forte de aprender a língua. Até que aconteceu um imprevisto. Melhor dizendo uma merda, um erro fatal de cálculo. Ela, fofa, jovem, cheia de vida e de planos, engravidou. Sem visto e sem ganhos, sem previsões e nem provisões, ela não pensou duas vezes. Ligou pra uma amiga austríaca que falava bem o português e esta lhe indicou uma clínica.
– Fica na Fleischmarkt, Rua Mercado da carne.
– Danke – Ela abriu a porta da cabine telefônica e uma rajada de vento gelado lhe bateu na cara. Enquanto vestia as luvas, tapando a camada fina de carne que cobria seus dedos, pensou: „Putz, que mau gosto. Não poderiam escolher uma outra rua pra abrir uma clínica de abortos? No Rio, fica na Dona Maria-alguma-coisa, ao lado da clínica do Pitanguy. É só sair de uma, andar alguns passos e entra em outra. Pra esquecer a merda que acabou de fazer, a mulherada vai direto aumentar os seios, fazer lipo…“
No dia marcado, lá foi ela sozinha para a tal rua (indigesto demais fazer trocadilhos com esta palavra nome desta rua, indo fazer o que ela tinha que fazer). Depois de terminado o procedimento, antes de deixar a clínica, ela ficou num quarto de espera junto com as outras „pacientes“. Toma-se chá, come-se algo. Silêncio constrangedor. Você gostaria de falar alguma coisa pra alguém que acabou de fazer a mesma merda que você? Tipo: „O dia tá bonito hoje, né?“, querendo dar uma de irônica. Ou melhor: „Que frio horroroso!“ querendo piorar ainda mais o clima de quem tá com a consciência pesando chumbo? Melhor mesmo é ficar calada. Só se ouve o barulho de torradinhas dissolvendo em bocas cúmplices. „Crunch, cruach, crumb, cruzes!“
Eram cinco ou seis mulheres. Uma delas se levanta para ir embora e sem pensar solta um:
– Aufwiedersehen (Até a próxima).
Uma outra protesta falando algo em alemão que ela não entendeu. Mas o que são significados quando você sente sim muito bem o que alguém diz sem precisar de traduções?
A austríaca disse algo como: „Eu espero que não haja nenhum Aufwiedersehen aqui neste lugar.“
E foi naquele momento que ela se interessou em aprender alemão. Um novo começo. Ela, que tinha acabado de matar algo, quis numa outra língua e com outras palavras, nascer de novo.