Três vezes Hugo

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„Alles, was ich tat, musste literarisch bedeutsam sein und dem Werk nutzen, 
jede Bewegung musste „Signifikanz“ haben. 
Ich lebte zeitweise in einer Wahnwelt der bedeutungsvollen Zeichen.“
Johnattan Franzen falou numa entrevista que ele chegou a surtar na Alemanha com uma overdose de significados. Tudo o que ele fazia deveria ter uma importânncia literária, cada movimento deveria ter um significado, isto levou-o a viver num mundo doido e saturado de tantos significados.
Palavras que cairam como uma luva pra mim. Chega de pirar e querer o sublime das palavras. Falemos de algo banal, coco por exemplo.
HUGO 1
 
O guri me enchia o saco por que queria ir sozinho pra escola. Por mim iria desde a primeira série. Afinal vivemos num país seguro, não? Lógico que sempre há algum perigo mas eu, finalmente separada do pai dele e vivendo minha liberdade em paz, não queria arriscar qualquer vacilo pro cara vir me tentar tirar a custódia do garoto de novo. Como tentou quando eu quis a separação. Não posso dar mole pra mané. Além do mais mané austríaco que se tu bobeia, ele pisa. Então eu ficava enrolando. O moleque pedia, eu enrolava.

–Mamãe mas são só duas estações de bonde… E o bonde parte daqui da porta de casa e pára na porta da escola…
– Um dia teu dia chega, meu filho.
Até que este dia chegou. Mais precisamente: o meu dia chegou. Tínhamos tomado um baita café da manhã gostoso com um pãozinho integral maneiríssimo. Tipo de pão que só tem por aqui. Trigo, Centeio, Espelta, uma overdose de sabores e fibras. E o tipo do pão que broher demora pra comer, tme que ser bme mastigado e tal. Enfim, nos atrasamos muito. Descemos correndo as escadas para alcançar o Bonde já parado no ponto. E enquanto descíamos as escadas, „Hugo“, inchado do maravilhoso pão, quis se manifestar. E fez de uma forma tão brusca que eu peidei. Fedorento e sonoro peido entre degraus de mármore. Mas Hugo não se deu por satisfeito, resolveu se acomodar na boca do gol. Apertei meu cu o quanto pude pra fazer frente ao atacante. O guri correu na minha frente, entrou no bonde e se virou me vendo plantada na calçada.
– Vem, Mama, entra rápido. O bonde já vai partir!
Eu de cu tão apertado que nem pensamento passava, só tive tempo de lhe dizer:
– É hoje, meu filho, é hoje!
O guri atordoado, a porta do bonde se fechando e as rugas da testa infantil aumentando.
– O quê, mamãe, o que tem hoje?
As portas de vidro do bonde já fechadas só me permitiram acenar-lhe um tchauzinho com a mão enluvada. Voltei para o prédio, subi as escadas correndo enquanto falava com meu intestino barulhento:
– É pra já, meu filho, é pra já!
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HUGO 2
Te digo uma coisa, morar aqui num é mole não. É um frio da porra, é uma gente esquisita, é uma língua foda demais. E sem falar que você carrega teus problemas, teus traumas e tudo o mais. Aderbal acha que vem pra cá e deixa tudo pra trás? Não, véio, vem tudo junto! Putz, daí resolvi fazer uma arrumação interna geral, consegui o contato de uma analista da hora, fodona mesmo. Já tinha ido umas cinco vezes lá. Eu falava, falava, falava. Ela só ouvindo. Depois ela dizia só poucas frases como se tivesse baixando as cartas de um poker. Eu ficava sempre de cara com a mina! Cabuloso mesmo. Ela sempre „ganhava as partidas“ e consequentemente ganhava minha confiança. Tudo estava indo bem, faxina cerebral evoluindo. Até que um dia aconteceu algo aparentemente banal mas que mudou o meu rumo. Era um destes dias que tudo é meio corrido e sempre se chega atrasado por que parece que o próprio tempo está atrasado. Enfim, bati uma xapa rápida e corri pra pegar o busão. Eu já estava atrasado para a minha consulta. Eis que enquanto me aproximo do consultório meu intestino começa a reclamar por atenção. „Fecho o portão“ como posso mas ele continua lutando contra meu tempo, meus passos, meu cu cerrado. Chego no consultório esbaforido. Coração e cu latejam fortemente. A analista me recebe com um largo sorriso. Mocréia simpática pacas. Eu me desculpo pelo atraso e digo que preciso usar o banheiro. Entro no cubículo e cago, cago, cago. Tanta merda que quase cola na minha bunda de novo. Também pudera, o vaso sanitário do consultório é daqueles que só existem por estas bandas: a bosta cai num palco e fica olhando pra tua cara como se quisesse ser servida. Indigesto.
Dou várias descargas, limpo meticulosamente o ditocujo, passo bravamente a vassourinha no „palco“ e finalizo limpando minhas mãos com água e sabão. Ela me esperava inquieta sentada na sua poltrona aveludada. Acomodei-me à sua frente. Uma leveza me percorria as células. Ela me olhou nos olhos e lançou a frase inicial de sempre:
– Wie geht es Ihnen? (Como você está?)
Eu a encarei e para a nossa surpresa nada saiu da minha boca. Como uma televisão com o som estragado. Emudecido, encarando-a, mudei várias vezes a posição das minhas pernas, cheguei a ensaiar um:
–Hum…Ahm…É…
Ela me ajudava, me embalava nas suas perguntas:
– O que você está pensando?
Cruzei e descruzei os braços.
– Você quer falar do passado?
Olhei para os quadros na parede, olhei fundo nos olhos dela. Chão, porta, plantas à direita. Janela, Teto, livros à esquerda.
– Você quer falar sobre alguém? Mãe? Pai?
Meu coração batia tranquilo. Cu em paz. Total plenitude. Só da boca nada saia. Nada. E assim fiquei por toda a sessão. Não consegui pronunciar uma palavra, não fui capaz de formar uma frase, expressar uma dor ou felicidade. Parecia que tudo o que eu teria para dizer já tinha saido de mim e a esta hora encontrava seu caminho nos canais de tratamento de esgoto do Danúbio. Meu tempo terminou. Levantei-me sereno, aliviado e lúcido. Me despedi dela e nunca mais voltei.
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HUGO 3
 
Vim para estudar dirigência na capital universal da música. Venho de uma família aristocrática brasileira. Meu pai pra pagar as dívidas milionárias que meu avô deixou, resolveu se tornar político. Corrupção, propinas, desvio de verbas. Cresci ouvindo palavras assim enquanto tocava piano no centro da sala majestosa. A música me fazia esquecer esta realidade podre e me fazia até esquecer que esta mesma realidade podre financiava meus estudos na Europa. Mas isto é passado. Consegui logo me firmar como profissional por aqui e me libertei de vez da dependência familiar regada à comícios demagogos e dólares escondidos em cuecas.
Comi várias mulheres e cansei. Cansei por que num determinado ponto a coisa sempre não vingava. E sei lá por quê! Você tem a partitura, os instrumentos e bons músicos mas a orquestra não avança, os pêlos do braço não levantam. Até que apareceu ela, de família ruralista, ou como diriam por aqui: Bauer. Que dizendo assim soltamente implica sempre uma rudez e preconceito. Roceira, seria talvez a tradução. Com seu andar duro e sua visão prática da vida, ela fazia um contraste com os gestos finos de moço bem criado que sou. E com ela mais uma vez tava lá todos os ingredientes, partitura (talvez um alegro?), músicos, orquestra… Só faltava vingar, a massa dar a liga, a música fluir para dentro do ser sem nem se saber estar ouvindo. Passaram-se alguns poucos anos. Nem muito para ser eternidade, nem pouco pra ser descartável. A relação era ótima. O que eu tinha de ternura, ela tinha de substância. Mas chegamos naquele Olimpo de falta total de ventos, em cima do planalto e por onde olhávamos só se via horizonte. Uma vida sem sobressaltos, um amor sem sustos. Daqui para o abismo é só um passo. mas eis que algo banal e até mesquinho acontece e muda o rumo do que poderia ser o fim.
Um filme bobo qualquer. Eu estava vendo tv com este cara de família aristocrática que quando conheci nunca imaginei que me comeria. Com certeza mais uma bicha artista por estas bandas, pensei. Eu o conheci na Feira de Natal do centro da cidade onde eu vendia meus produtos. Ele queria saber como se fazia tudo. O leite da cabra que eu tirava e fazia os queijos, os grãos colhidos e moídos frescos para fazer o pão de centeio… Convidei o distinto cavalheiro a fazer uma visita ao meu Bauernhof (Sítio) e lá mesmo eu mostrei o „celeiro“ todo pra ele. Um homem educado, fino, atencioso. Tão diferente destes Spiesser („Coxinhas“) do primeiro distrito. Na cama então não poderia ser melhor. Eu com investidas, ele com composições. E olha que já tinha tentado de tudo, conterrâneos, africanos, vizinhos, amigos de escola… Eu, a matéria bruta, fruto desta terra gelada, acabei me apaixonando por um exemplar exótico e diferente de tudo o que eu até hoje entendia como macho. Fui deixando rolar e curtindo enquanto podia. Sabe lá quanto tempo duraria? Mas foi no dia seguinte depois de termos visto aquele filme bobo. Fomos dormir e nem trepamos. Acordei de manhã e ele estava tão distante. Eu já esperava uma bomba. Tipo acabou. Também, pra que eu fui falar o que eu falei? Mas fazer o que se ser é mais forte do que querer? As dúvidas martelavam na minha cabeça enquanto ele batia a casca do ovo quente com a colher de prata. Tec, tec. Eu nunca saberei se foi por que eu falei o que eu falei naquela noite de filme bobo que a vida tomou outro rumo. Eu nunca perguntarei mas o meu instinto de roceira, de quem sabe ler o clima e tem terra encravada nas unhas, diz que sim, foi isto.
Ela preparou um Krautfleckel (massa amanteigada com repolho) maravilhoso. Comeram bastante, ele mais ainda. Ligaram a TV e estavam vendo o tal filme bobo. Ele, acostumado a infância inteira a receber regularmente feijão com bastante alho no seu tubo intestinal, começou a se contorcer em reviravoltas e revoluções internas incapazes de serem controladas. O dirigente no Pult do tubo digestivo tentando dominar uma orquestra que decidiu de repente tocar a própria música. E que música! Qualquer movimento em falso poderia revelar a sonoridade da situação intestinal. Ele sem saber como agir, com ela nos braços e o filme que não acabava, teve a feliz idéia de fazer um crime silencioso. O lord elegante e respeitado dirigente soltou um silencioso mas fedorentérrimo pum. Ela, a roceira pragmática, apesar de sempre ter se contido em relação à estes assuntos e sempre ter se esforçado pra se mostrar educada e ter boas maneiras, diz num ato impensável de espontaneidade:
– Você peidou!
Depois de anos de relação, sem nunca ela ter ouvido as notas de um arroto dele ou a melodia do seu pum, falou na cara dura. Ficaram por um momento um encarando o outro. Tomados por um botox facial que ausentava qualquer expressão decifrável. Ele ainda por cima vermelho, sentindo o sangue bombar na cara, morto de vergonha. Ela toda sem graça pelo excesso de sensatez („que merda eu fui falar!“) para no momento seguinte ele soltar uma gargalhada e os dois se põem a rir juntos, muito.
No dia seguinte ele acordou decidido. E para tal não poderia perder a concentração. Coragem, firmeza. Decorou a frase na cabeça várias vezes, não podia balbuciar nem ser enérgico demais. Não deveria falar nem muito alto nem muito baixo. Nem submisso, nem soberano. Tec, tec. A colher de prata penetrou no ovo quente. Ele olha nos olhos dela e pergunta:
– Você quer casar comigo?