Eles tinham acabado de discutir. Discussão feia. Grande. Asquerosa. E olha que tava tudo bem, mas, enfim…
Continue readingCrônicas
Circularmente
Ano passado, eu estava me sentindo num túnel sem fim. Esperando e-mails que não chegavam, respostas que não vinham, empregos que não existiam.
Continue readingSem motivos para escapar
No meio da comemoração de Natal, entre este biscoitinho tá ótimo e adorei os presentes, senti um olhar inquisidor vindo de algum canto. Alguém me observava, e eu procurava saber de onde. Até que achei você olhando pra mim, com um certo ar de Mona Lisa enigmática. Meio deboche, meio seriedade. Ah, então foi isso que você construiu, né, Lina? Me intimava esse olhar. Você, que sonhara tantas coisas e era movida por tantas certezas. Que saiu por aí atrás de seus sonhos, que perdeu o fio da própria meada tantas vezes… Ela me encarava com os olhos de dezesseis anos, me hipnotizava numa viagem entre nunca passado e sempre futuro. Porque o presente é esse átomo infinito que escorrega entre os dedos, que foge no seu olhar. Ah, então foi isso que você construiu, né? Amor, filhos, família, Viena… Eu estou aqui parada um tempão procurando seus olhos, encare-me, encare-se!, você me grita numa impaciência imóvel e imortal, uma inquietude de sempre a mesma. Aceitei a careação e pus-me a te fotografar, você-eu, os dezesseis anos mirando os cinquenta e dois. Um duelo de anseios e cobranças, de sustos e delírios, de confraternização e repulsa, de gozos e sabores. Sem chances de escapar. Como uma foto numa cristaleira, tirada a dez mil quilômetros de distância do lugar de origem, pousada em algum apartamento na cidade de Viena, na segunda década do século vinte. E um encontrando o todo e o tudo do tempo numa noite de Natal. E uma encontrando a outra. Aqui estamos, eu e você, o agora e o nunca, o jamais e o eterno. Sem motivos para escapar.
Costurando o amor
A autenticidade do amor não consiste apenas em projetar nossa verdade sobre o outro e, finalmente, ver o outro exclusivamente segundo nossos olhos, mas sim de nos deixar contaminar pela verdade do outro.
Edgar Morin
como se o amor se dedilhasse em uma costura, o ponto certeiro, a agulha furando o pano, riscando o ar como foguete para voltar um pouco mais à frente e furá-lo de novo, sempre seguindo, ano após ano, trepada após trepada, filho após filho. olha-se para trás e vê-se uma bainha de vida inteira feita. ora espaçada, torta; ora certinha, lindinha. mas como seria se agora a linha resolvesse arrebentar? e o pano fosse elástico? com um puxão, a costura se esvairia em um fio sem rumo.
ela tinha certeza do amor dele, menos porque ele declarava isso em momentos íntimos, mais porque ele estava ali, presente todos esses anos. porém a vacina de criança lhe surtiu efeito eterno no sistema imunológico emocional. pai morto, padrasto ausente. saiu pra trabalhar e não voltou. um porque morreu, outro porque era assim que tinha que ser. toda a presença de sempre e a confidência dos agoras poderiam se soltar da costura e saírem voando. fio solto.
e ela meteu na cabeça que queria abrir um restaurante.
mas como? você tá louca?
é coisa pequena, comida gostosa, boas cachaças…
e as crianças? e a gente?
ah, a gente se vira. elas já estão grandes…
é muito trabalho, você sabe.
eu sei, mas eu quero.
mas e o tempo? o estresse que tudo isso acarreta?
a gente consegue, eu consigo.
é um risco muito grande, a europa tá em crise.
eu sei, eu sei, mas eu quero…
eu não quero mudar de profissão…
nem precisa, eu quero entrar nessa sozinha.
ela volta e meia falava no assunto. o tempo foi passando, e ele sempre fugia ou a enfrentava com os mesmos argumentos. até que, um dia, ela decidiu colocar o plano em ação. começou a estudar pra prova de concessão. ele deu uma olhada na matéria.
nossa, tudo isto?
é, direitos do trabalhador, prevenção de acidentes, conservação de alimentos, impostos…
bastante coisa, hein?
pois é. mas tenho tempo, a prova é só daqui a um mês.
ele não quis desanimá-la, mas achou que seria bem difícil ela passar nessa prova.
no dia seguinte, ele voltou de um encontro de trabalho empolgado.
passei pela rua tal e vi isto aqui. ele mostra as fotos no celular.
um local pra alugar. o que você acha?
vitrines empoeiradas, localização duvidosa. ela passou os olhos rapidamente pelas fotos e olhou longamente pra ele. sorriu.
você gostou?
sim, legal.
ela mentiu. nem o espaço nem a localização eram adequados. mas estava imensamente feliz. lembrou a cena do leaving las vegas em que a namorada dá de presente a um nicolas cage alcoólatra uma garrafinha de metal pra encher de bebida, e, no filme, o cara se emociona muito com o gesto.
naquele momento, ela percebeu que era mesmo amor o que ele sentia. uma foto de vitrines empoeiradas deu a ela toda a dimensão do sentimento que ela já tinha recebido, mas não sabia bem interiorizar. a vacina perdeu a validade.
a linha termina uma bainha, a agulha fura o ar e, antes de penetrar novamente no tecido, pirueta-se em si mesma, entrando no “O” feito do próprio corpo. fura, volta, mais uma autopirueta, “O” adentro. arremate. Agora. sim, o fio – esse pedaço que resta para fora da costura – pode se despedir do pano…
O amor é a percepção extremamente difícil de que algo além de nós é real.
Iris Murdoch
O sexo é consumo. O sentimento é invenção contínua.
O amor é a verdadeira revolução.
Alain Badiou
De uma metamorfose ambulante
Aí você ajuda a organizar um coletivo de mulheres brasileiras para se auto apoiarem nesta selva de austro-patriarcalismo, estereótipos enraizados e vagões de metrô fedorentos de suor humano. Continue reading
Os desencaixados
Casamento do meu irmão, hoje. É impressionante perceber, hoje, como a vida se encaixa. A nossa vida que nasceu desencaixada. Hoje, comemoramos o casamento que, para alguns, é, no mínimo, um desencaixe. Para nós, filhos do desencaixe, é um dos acontecimentos mais encaixados do mundo. O desencaixe aconteceu com a morte do nosso pai. Uma vida toda planejada no encaixe – até que a morte súbita dele provocou o desencaixe de seus filhos e mulher. Crescemos no desencaixe e fomos felizes nele. Países, objetivos, pessoas, sonhos, tudo desencaixado. A beleza do desencaixe, a agonia dos desencaixados, deliciosos riscos, fomos vivendo. Vivendo sem saber que buscávamos nosso encaixe, só nosso. Sem receitas prontas. E, hoje, olhando a vida do meu irmão, o trajeto feito até aqui, agora, os desencaixes vividos, gozados e sofridos, tudo faz sentido. Como se, agora, os desencaixes, que pareciam enigmas, se esclarecem como céu azul varrendo nuvens. Uma congruência tão óbvia de tempo e espaço que é impossível explicar a lógica do acaso. Do acaso Viena, do acaso hoje, e não ontem, do acaso desse cabelo ruivo longo, e não qualquer outro, do acaso constelação familiar, essa, e não outra qualquer chorando lágrimas polpudas, descendo em corpo robusto, encaixando suas mãos rechonchudas nas mãos do meu irmão. A outra mão ele tem enrolada na do cara de longo cabelo ruivo, esse ruivo, e não qualquer outro. Totalmente alheios ao desencaixe ao redor, eles, subversivamente, se entregam ao encaixe. Deles, só deles. Merecidamente deles.