Existem momentos que me fazem refletir sobre o que vejo ou sinto. E, juntando com outras emoções e lembranças, misturando com alguma coisa que me contaram, desemboca tudo numa história que vira uma crônica. Mas existem também momentos em que não se desenrola nada, não se faz um disco, só fica tocando a mesma música porque é a preferida.
E a repetição é necessária para que se transmita a singularidade do momento. E acaba virando um poema. Por exemplo, o momento único de um dia ensolarado de outono. Quando o sol ainda não se despediu do seu exercício diário de subir até bem alto no céu. Quando tudo ainda é vivo e a natureza se desdobra em cores quentes. Acho que é uma das coisas mais bonitas de se viver aqui nesta região. Sentir tão nitidamente o dia de uma estação. Não sei se, pra quem não mora por aqui, daria pra entender a beleza desses minutos. Passar por longos invernos é aprender a viver esses momentos como especiais, muito especiais.
Também especial é o momento de solidão completa. Quando o tempo parece parar, aprisionado numa minúscula toalete. O momento singelo e derradeiro que faz de todos os seres humanos iguais. Onde tudo de ruim que está dentro sai, num ritual diário e purificante. A pessoa e seu cu, seu cu e a pessoa.
Soneto de outono
cricrchrih-cracrchrah
teus sapatos trituram as folhas amarelas
cricrchrih-cracrchrah
tá ouvindo?
tá me ouvindo?
vem comigo,
rodopia
ah, assim, solta…
olha a criança correndo,
o velhinho sorrindo.
olha pra cá,
olha pra mim.
procuro um caminho até você entre folhas amarelas.
cadê? ah…
te cego!
vem comigo,
me cheire!
esfregue tua cara nos meus raios de luz,
deite em cima de mim e me amasse!
cricrchrih-cracrchrah
levante, vem cá!
assim, roda, roda
não tenha medo
eu não deixo você vomitar
você saiu naquela foto
ali o japonês, ali!
vai levar você para Tóquio!
não, só tua imagem.
você fica aqui comigo,
rodando, rodando
olha o skate que voa!
a calça do menino quase cai. caiu?
olha a bicicleta, sai do caminho.
vem comigo, por aqui,
cricrchrih-cracrchrah
olhe aqui pra cima:
azul
pra baixo:
amarelo
solta, solta, rodopia, isso!
sombra, luz:
azul, amarelo
sombra, luz:
vermelho, marrom
sim. porque eu ainda estou aqui, vivo
ainda estou vestido, vaidoso
depois serei nu e você me verá por inteiro,
sem folhas, sem cor, sem eu.
por isso agora é hora de dançar
dança comigo,
roda, roda,
não para!
solta, solta…
deita aí,
é, aí mesmo.
agora ouça!
tá baixinho mas dá pra ouvir:
cricrchrih-cracrchrah
cricrchrih-cracrchrah
ela eu
ela gosta do ritual
sim, ela! sim, eu!
acordar bem cedo, enquanto todos ainda estão dormindo.
numa hora única em que ela pode ser ela mesma
não mãe, não mulher, não amiga.
só ela, só eu.
devagarzinho, psiu, não faça barulho.
cata óculos e jornal
ou um bom livro.
puxa o banquinho, herança dos tempos em que as crianças precisavam dele pra usar o vaso.
apoia os pés, senta.
o cocô sai obediente como se dissesse demorô!
então ela começa a ler.
ela, eu!
e lê
o cheiro da bosta inunda o ambiente minúsculo chamado toalete.
e lê
„putz, hoje tá demais. o que eu comi ontem?“
e lê.
só ela, só eu.
e lê
a função fisiológica já terminou faz tempo.
só lê.
o cocô vai secando no cu sujo
„saiu o pacote econômico do novo governo“
as pernas começam a ficar dormentes…
„e tinha que tomar três ônibus pra chegar à prisão onde o marido se encontrava preso…“
ela testa os músculos vaginais,
aperta, solta, aperta, solta
„roma por 359 euros!“
xixi de novo?
„quando o trabalho traz felicidade“
ela não sente mais as pernas.
levanta amparando-se nas paredes
feliz com a dor sentida pela dormência.
ela, eu.
limpo minuciosamente o cu com papel especial molhado
fazendo o acabamento com um papel seco normal.
ritual mais que bem-vindo numa terra onde bidê e chuveirinhos não existem.
lentamente volta a sentir as pernas.
ela, eu!
abre a porta satisfeita.
intestino esvaziado, cu limpo, cabeça nutrida
agora, sim, o dia pode vir
o guri mais novo corre em sua direção e a abraça
só tenho tempo de levantar os braços e dizer:
„já. já, te pego“
e vai apressada lavar as mãos no banheiro.
ela, eu!