Eu, encostada na parede com meu modelito mais original e extravagante possível e imaginável. Seguindo o lema“Sou assim e já mostro logo“. Ao meu lado esquerdo, homens, rapazes, de idade indefinida, cada um com seus respectivos óculos quadrados de aro preto e o velho truque da combinação de calça jeans com blazer. Pura falta de personalidade fashion. Ao meu lado direito, a porta. Eu sou a próxima. Frio na barriga. Olho pras minhas unhas vermelhas, com esmalte descascando. Deixa pra lá, Lina, é moderno! O que alguns anos de análise não fazem… Até pra unha descascada eu encontro um way-out. Zezinho se orgulharia de mim agora. Será que ele sabe que o apelido dele é esse? Pô, mas se ele fosse analista no Rio, com certeza colocaria no cartão de visitas „Dr. Zezinho“, em vez de „Herr Diplom Psycho blablá Joseph“. Pois se até governador se chama Garotinho…
– Frau Mares? – Ui, sou eu!
– Entre, por favor. – A mulher, vestida num pretinho básico tamanho 36 (!), segura a porta para eu entrar. Mãos se cumprimentam: Grüß Gott, Grüß Gott, salve Deus ou algo do tipo. Sentamos. Ela passa os olhos rapidamente pelos papéis.
– Frau Mares, o que a senhora sabe fazer?
– Ih, tanta coisa! Por exemplo: um ensopado de galinha com leite de coco que é uma delícia!
– Mas, Frau Mares, nós estamos aqui numa entrevista para o cargo de designer gráfico…
– Ué, mas, se a senhora quer saber sobre os meus poderes gráficos, tá tudo aí nos papéis.
– Hum, hum, ok! – Ela retorna o olhar, um tanto atordoada, para os papéis. – Quais eram as tuas tarefas no último emprego em que esteve?
– Naquela revista semanal? Ah, era fazer meus colegas rirem! – Ela tira os óculos quadrados (lógico), de aro grosso (óbvio) preto (existe outra cor no mundo?), e me encara.
– Pensei que era diagramadora… – Ironia e irritação na voz.
– Ai, aquele povo todo cinza, que consome dois maços de cigarro por dia, curvado sobre monitores… Ui, era uma chatice! Eu chegava lá e chamava todo mundo de Schatz (tesouro), botava uma bossa nova básica pra alegrar o ambiente e ia logo falando um “bom dia!” bem alto, distribuindo uns “tudo bem?” e “tudo bom?”, daí contava uma piada…
– E quando a senhora começava a trabalhar?
– Minha senhora, escuta aqui, você ainda não percebeu o trabalho que é se vestir, se maquiar, se fazer bonita e bem-humorada, sair no frio com um céu cinza escuro te pressionado a cabeça pra levantar o astral de cinco austríacos completamente entediados pela vida e pelo trabalho?
– Mas eu achei que a senhora fosse contratada como diagramadora, e não como animadora de repartição!
– Mas eu já te falei que tudo está aí nos papéis. A senhora me chamou pra esta entrevista pra quê? Pra me conhecer pessoalmente, pra conversar, oder? Pois é o que eu estou fazendo, estou te contando a parte agradável da minha experiência de trabalho. Não vá achar que está faltando um parafuso na minha cabeça, mas… – Ela me interrompe.
– Parafuso?
– Desculpa, usei uma expressão bem Brasil. Quero dizer, em alemão, vocês diriam que ela (eu!) „não tem todas as xícaras no armário“.
– Ah, so!
– Pois é, falando sinceramente com a senhora – Coloco todas as pontas dos dedos na cabeça, aproveitando a ocasião para ajeitar o penteado out of bed –, eu tenho todas as xícaras na minha cuca, digo, armário, mas nenhuma é igual aoutra, sabe?
– E o que tudo isso tem a ver com… – Ela está pasma, perdida, me olha como se estivesse vendo um extraterrestre.
– Acho que errei na dose… – penso alto.
– Dosis? Onde a senhora aprendeu alemão?
– Ah, isso é outro Kropf, outro papo! Olha, vamos colocar de novo os pontos nos “is”…
– Ísch? Ich? Eu? Pontos em mim?
– Ih, se a gente continuar assim, vai dar pano pra muita manga…
Ela resolveu relaxar e gozar. Recostou-se na cadeira, recuperando o ar de superior imperatriz, demonstrando estar se deliciando com a situaçao totalmente surrealista.
– Manga? Adoro manga!
E agora, Lina? Ela caiu no meu jogo, perdeu a graça. É hora de voltar ao sério.
– Ou a senhora está interessada em saber que uma bendita foto de abertura era trocada quatro vezes, porque a ministra estava se sentindo horrorosa com o modelito de operária e resolveu interferir diretamente na minha obra de arte, me ligando toda hora?
– Mas…
– Eles jogavam cada pepino pra cima de mim, nem te conto!
– Pepino? Na tua mesa de trabalho?
– Não, não. Quero dizer, eu tinha que descascar os abacaxis, sabe como?
– Ah, então você trabalhava na cozinha…
– Que cozinha? Não, peraí, vou falar em alemão claro: eles me mandavam tirar as castanhas quentes do fogo.Entendeu?
– Ah, claro!
– Uma vez, por causa de uma palavrinha, eu quase perdi o emprego porque o redator-chefe se recusou a encurtar o texto, e o meu chefinho, diretor de arte, me proibiu de espremer as letras. E eu, muito puta, rodei a baiana…
– Rodou o quê?
– A baiana, minha senhora! Fiz um Skandal, como vocês dizem. – Ela olha no relógio, nervosa, e cai na real.
– Olha, a senhora vai me desculpar, mas existem outros candidatos esperando…
– Existe, lá fora, um bando de gente chata e sem graça, esperando pra trabalhar nesta firma entediada, com esta revista mais entediada ainda… – Sinceridade é meu forte.
– Não acredito no que estou ouvindo! – Cor facial: lourinha-camarão.
– Por que não? É verdade! Olhe pra tua cara, pra tua boca sem sorriso. É igual a esta revista que você faz. – A mulher,de boca aberta, se vira discretamente para o espelho ao lado da mesa. Tenta mudar suas feições enrugadas e empanquecadas por um semblante mais suave. Não consegue, a raiva e indignação tomam conta da imagem refletida.
– Chega! Meu nariz está cheio!
– A senhora quer um lenço?
– Não, eu quero dizer, falando num „português claro“, que eu não aguento mais! Você está me botando no alto da palmeira!
– Palmeira? Onde? Ah, a senhora está de saco cheio, é isso?
– Saco? Eu? – Ela passa as mãos na barriga inexistente. – E ainda se atreve a me chamar de gorda! Por favor, vá embora. Não tenho tempo a perder e…
– Vou embora, sim. – Abro minha bolsa e, na maior calma, coloco os papéis de volta. – Tem um monte de outros candidatos lá fora, prontos e engravatados, com experiência no exterior, com prêmios… – Fecho a bolsa e melevanto, ajeitando a saia. – E um deles vai ganhar este emprego tedioso nesta revista entediada. – Arrumo a pregadeira no cabelo. – Eu não, vou sair por aí – Jogo as pontas do lenço amarrado no pescoço para trás, requebro os quadris para a esquerda. –, entrar num café e ligar prum amigo, jogar conversa fora com a garçonete…
– Jogar conversa fora?
– É. Falar linguiça, como vocês costumam dizer.
– Você é louca!
– Eu sei, sou completamente biruta, e é disso que você precisa! De gente doida pra mexer com a vida desta empresa. – Dez pontas de dedos ajeitando o out of bed. Olhos, entre rímel e sombra cintilante, percorrendo as paredes brancas. – Ou todos os empregados que a senhora tem são cem porcento eficientes e perfeitos?
– Não, mas quase… – Interrompo a lourinha-camarão-queimado.
– Rodeada de eficiência e perfeição! De robôs sem alma nem humor, coitada da senhora… Mas te digo uma coisa, já que eu não vou mesmo ganhar este emprego. Esse pretinho básico ficaria muito mais bonito se a senhora colocasse unsbalangandãs coloridos no teu pescoço, um cintão bem grossão de couro trançado… – A mulher, de boca aberta, olha para o próprio corpo. – Soltava esse cabelo, fazia um corte decente, tirava esse permanente horroroso… – Ela passa as mãos no cabelo. Os olhos saltando pra fora dos óculos (de aro preto e quadrado, é lógico!). – E, quanto à revista, minha querida, sai dessa lama, jacaré!
– Lama? Jacaré?
– É, porque você está „sentada na tinta“, mané! Pegue umas Fonts diferentes, brinque com dimensões e perspectivas, abuse de cores e sabores, aliás, pra tua própria vida. – Ando pela sala, sem parar de falar. – Pendure uns quadros neste escritório, que mais parece um hospital… – Ajeito a bolsa a tiracolo, coloco os óculos escuros no rosto. – Enfim, vou indo, foi um prazer conhecê-la! – Estendo a mão de unhas vermelho-descascado por cima da mesa para me despedir.
– Não, não! Espere um pouco. – A mulher se levanta bruscamente, empurrando a cadeira para trás, ajeita ocabelo, segura com firmeza a mão da candidata e abre um sorriso. – Mudei de ideia, o emprego é seu!
Expressões idiomáticas em alemão
Expressões idiomáticas em alemão com tradução em inglês
Expressões idiomáticas em português
Ótimo artigo do „Deutsche Welle“ sobre o assunto
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