– Como assim “bem provida?” Ela foi é bem comida, porra!
Lina gritava encarando a tela do laptop. O marido que tomava tranquilo seu café da manhã na cozinha, ouvia e pensava:
– Ainda bem que não é comigo.
Ela continuava pagando o maior esporro pro monitor. O marido sem entender: “Será que é skype? Não ouço ninguém falar nada.” Ele já com muitos anos de experiência nas costas, resolveu esperar: “Mulher pra acalmar ou você come na hora ou então se faz de invisível”. Ele tinha acabado de levar as crianças na escola e se preparava pra tomar seu café da manhã na cozinha tranquilo, em ritmo de valsa…
Ela levanta da escrivaninha e começa a andar pelo corredor:
– Esta juventude está perdida mesmo! Não fumam maconha, não tomam LSD e agora mais esta: Não sabem perder o pudor! Isto é que dá se encher de ecstasy e ficar pulando ao som destes drums e drans da vida… Acham que tudo é legal, bacana e limpo! Cadê a sacanagem, pessoal? Cadê a depravação? O que vai ser do mundo daqui a alguns anos? Onde nós vamos parar deste jeito?
Pra variar, ela partiu fundo pro esquema Lavínia de falar, uma coisa puxa a outra que puxa a outra e cai tudo junto. Mas pra isto é sempre bom ter uma vítima por perto. Ela procura o marido pelo apartamento de pé direito alto e estilo art-nouveau, contrastando com sua própria figura tão exótica. Pisando no chão de tábua corrida e abrindo portas de madeira trabalhada. Não, ela não faz parte deste contexto, ela sempre soube disto. E gostava até que fosse assim. A distância certa entre ela e o mundo ao redor.
“Eu não sou daqui mas fui puxada pra cá, eu sei”. Lina sempre se lembrava das férias passadas em Macarena na casa da tia casada e tão feliz que tinha na parede reproduções de “o Beijo”, um quadro de uma sensibilidade e amor tão singelos e “Danae”, com vasta cabeleira recebendo uma chuva de ouro nas pernas arreganhadas. Klimt na mais sublime tradução de ternura e sacanagem. Ela era capaz de ficar sentada no corredor por horas olhando aqueles dois quadros. A garotinha que admirava aquelas obras queria entrar naquele mundo, entender aquelas “outras palavras” que se traduziam em linhas e cores. Deu milhões de voltas até chegar aqui nesta cidade e mais milhões para chegar no estado em que se encontra: casada e feliz. Era inevitável pensar na tia e em Klimt, a correlação era óbvia demais. Dois ingredientes para um bom casamento que ela mesma teve que descobrir: Romantismo e pornografia, sem dramas nem censuras.
Mas agora, neste momento, ela estava preocupada com a falta do segundo componente desta dualidade ideal: a sacanagem. E continuava procurando o marido pelos corredores do apartamento.
– Onde ele se enfiou? – Ela acha ele (ainda) tranquilo na cozinha saboreando seu melange** e lendo o jornal. E vai logo continuando a palestra sem se dar o trabalho de introduzir o tema:
– Ai que saudade dos tempos perversos! Eu mijava no box e me achava super subversiva. Agora não, xixi no banho passou a ser politicamente correto e até desejável pra economizar a descarga. Ah, perdeu a graça! –
Ele a deixa falar e nem tenta entender o que uma coisa tem haver com qualquer outra, ou aonde ela está querendo chegar. “Viver ultrapassa qualquer entendimento”, já diria Clarice. “E com uma mulher destas se atropela qualquer entendimento”, ele pensou.
– É como no dia em que fizerem campanha pedindo pra cachorro fazer cocô nas ruas, os donos vão ficar putos, vão correr pro analista e iiihhhh, pode dar até suicídio!
A espuma do melange ainda se desmanchando nos lábios. O semmel quentinho recheado de manteiga de primeira. Tudo em plena sinfonia. De repente adentra um instrumento inusitado e inesperado na composição dele. Trombone? Bumbo? Tamborim nervoso?
– Sem sacanagem o mundo não vive, minha gente! Como pode ser saudável e são, viver numa época em que vibrador sexual é chamado de bastão de massagem? E ainda vem com a cara da Hello Kitty? Hellooou, piraram!
O melange esfriando na xícara. Vontade de suspirar e olhar pra cima, mas ele não é louco de dar esta bandeira. Finge interesse. Ela avança com a bateria. Bumbo mandando ver.
– Como se já não me bastasse o conflito de ser estrangeira, agora mais essa: Conflito com uma nova geração que não tem conflito! O que vai ser do mundo com estes jovens? Meu sobrinho mesmo, sabe o que ele fez?
– Não, o quê?
Ela pega ele pelo braço, que tenta continuar lendo a notícia, dando apenas sua presença auditiva. Pra Lina, muito pouco. Ela segura no queixo dele e faz virar seu rosto em direção ao dela.
O marido lembra da família de Lina. Todos se comportam assim, mães, tios, irmãos: todos surdos, histéricos e carentes de atenção. Almoço de domingo no Brasil é uma loucura, 10 exemplares de Linas andando pela casa berrando e gesticulando. Cutucando, puxando os braços, virando os rostos uns dos outros. Me olhem, me escutem, me sintam!
– Sabe o que ele fez, amor? – O queixo do marido aprisionado nas mãos dela – Casou! Imagina!
– Éééé…
– Como assim, éééé? Você não acha um absurdo? Casar? Nossa geração propagou o amor livre, confrontou a igreja católica, desmascaramos todos estes valores burgueses ridículos… Até a mãe dele nunca casou. Isto é um vexame! Uma afronta aos bons costumes! Digo aos maus-costumes!
Maridão muito esperto e conhecedor da causa, não iria cair na cilada de contestá-la naquele estado. Pandeiro eufórico? Reco-reco frenético?
– É… incrível…
– Imagina entrar na igreja toda de branco, prometer aquilo tudo… Este mundo tá perdido!
– Será que ela casou virgem?
– Lógico que não! Aí seria demais!
– Mas… por que você está falando sobre isto agora, Lina?
– Ah, lembra aquela turma de mestrandos da universidade de Viena, que usaram meu blog para objeto de estudo?
– Sim.
– Pois é, os estudantes traduziram a crônica “A brasileira Wahnsinnada”. Acabei de receber.
– Ah, legal.
– Legal, mas vamos combinar que “bem provida” é diferente de “bem comida”, né?- Gritava a perua descompensada.
– Como assim?
– ”Ordentlich besorgt” não é “bem comida” mas sim bem abastecida, bem provida…
– Ah, é verdade.
– Por exemplo, me diz se você estivesse num bar conversando com um amigo, como você diria para ele que uma mulher tem que ser bem comida em alemão?
– Hum… Eu falaria “gut gepudert”.
– E como eu nunca ouvi isto antes?
– Por que você é bem comida em português, ou eu estou enganado?
– Ah, é verdade, alemão pra bulas e manuais de instrução, português pra amar e brigar.
A fórmula funciona bem entre eles há mais de 15 anos. Até as crianças aderiram ao linguajar peculiar da família. Cada coisa no seu lugar, cada emoção, uma gaveta; cada manobra, uma língua. Como já explicado no „Pretérito do samba“
– Mas o que significa isto? Gepudert?
Ele arregaça as mangas da camisa, deixa os bíceps bem delineados à mostra e faz um movimento como se estivesse socando a mandioca:
– Você sabe como se faz manteiga? Pois é, a gente tem que socar ela assim!
E movimenta os músculos para cima e para baixo tocando o fundo de um panelão imaginário.
– Uau, que poder! Genau total! Me faz virar manteiga!
Os olhos de Lina brilharam como criança aprendendo uma nova letra.
– Mas agora tenho que ir. Os alunos estão me esperando lá na Uni. Tô atrasada.
Ela lhe dá um beijo rápido e ao mesmo tempo aperta-lhe o pau. Ele sempre estremece nestas horas por que nunca acredita que ela tem o total controle deste simples gesto. “Vai que ela esquece e aperta o meu pau na rua ou na casa da minha mãe…”.
No próximo instante ela já está na porta para sair. Como sempre, literalmente enrolada com cachecol, luvas, boinas e como sempre amaldiçoando o inverno.
– Mais de 20 anos morando aqui e não consigo me ajustar a este código invernal! Verdammt! (=raios!) Cadê a outra luva? Bussi, bussi, Schatz! (=beijinhos, tesouro!)
Ela se vira pra jogar um beijo mas o capuz do casaco não acompanha o movimento e ela beija o próprio nylon.
Ele ainda fala em português:
– Quando você voltar, te ensino a fazer manteiga, gustosa!
Ela, já com a porta aberta, só tem tempo de soltar um:
– Aaaahhhhh!!!
Que ecoa pelos corredores do prédio construído com pura poesia vienense de fins do século XIX. Pisos carinhosamente pintados, ornamentos delicadamente trabalhados em gesso e corrimões dançantes recebem o “Aaaahhh” com prazer rejuvenescido. Ela avança descendo as escadas. Maçanetas ondulantes abrem contentes as divisórias de vidro. Aaaaahhh!!!!
Ela inevitavelmente pensa com orgulho que apesar de não fazer parte desta cultura, foi aqui que nasceu a modernidade. Onde Klimt e seus amigos levantaram a Secession, Wittgenstein se entregou de “língua” e alma à filosofia e Freud escrevia à Schnitzler confessando a inveja que sentia do escritor por conseguir descrever tão bem a psique humana em seus romances. Viena, berço da modernidade que se perpetuou em “Altbaus” (prédios antigos).
Foto: www.hiese.de |
A Altbauwohnung (apartamento antigo) cai de novo na paz original austral. Ele aproveita para acabar de ler o jornal e se diverte ao pensar que isto seria um bom material para uma nova crônica dela: “Lina vai à Universidade ensinar os alunos a traduzir “bem comida”! No mínimo, surreal!”
Dez minutos mais tarde ela liga e fala em alemão:
– Schatz(=tesouro), o tal do gut gepudert, é gepudert com “p” ou com “b”?
– Lina, onde você está?
– No metrô. Fala logo, como se escreve gepudert?
Ele imagina a cena e não contém o riso. Na hora do rush, o metrô lotado e a mulher dele – que fala alto como sempre – querendo saber como se escreve bem comida, ou melhor “bem amanteigada!” Bem humorado e com a dose certa de cafeína no sangue, ele solta um sorriso descompromissado enquanto diz:
– Do jeito que você quiser, gustosa!
O último gole de melange desce tranquilo pela garganta, a sinfonia que antes era apenas uma valsa, ganhou um toque de allegro no meio. Reco-reco ainda dominando o ritmo, surdo se retirando… A manteiga lambendo o semmel… O agogô e a cuíca dando um toque final… E ele pensa quanto tempo deverá demorar pra ela voltar pra casa… O chocalho fecha a cena se despedindo devagarinho…
** Melange: café expresso com leite espumante.
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