De férias no país de origem, ela foi visitar o tio numa casa de repouso. Derrame cerebral. Um quarto grande com vários leitos ocupados por pacientes em estados semilúcidos, ou nada lúcidos.
Sentada ao lado da cama, ela observava o ente querido, que lhe parecia não conseguir retribuir a atenção, vagando entre espaços galácticos e tempos difusos. A enfermeira ao lado, sentada de frente para a outra cama, cuidava de um outro paciente, que também habitava há meses outras dimensões. As cadeiras, posicionadas em direções opostas, quase se encostavam, ombros espelhados um no outro. A enfermeira virou o rosto para ela, a visita. „Ele estava dirigindo o carro com a amante quando aconteceu o acidente. A amante morreu, e ele ficou assim.“ Cochichos em tons conspirativos. „A mulher dele vem aqui todo santo dia e fica horas cuidando dele e…“ Antes de completar a frase, ela virou ainda mais o corpo e encarou bem a visita, pra ver se teria terreno para tal opinião: „… se fosse comigo, eu largava!“ E, ainda mais confidente, voz quase tocando tímpano alheio: „Cara safado!“ Entreolham-se. A enfermeira, meio incomodada e querendo logo tirar a limpo a posição da ouvinte, prepara uma expressão facial de vilã de telenovela. „E você? O que você faria?“ A visita virou-se e olhou lentamente o outro paciente, depois o tio e, por fim, a enfermeira. Não falou nada, nem uma vogal, nem uma ruga na testa. Insonoridade entre ombros e cadeiras. Qualquer resposta seria um ato de cumplicidade. Nada a declarar. Meu silêncio era como um implorar por ausência. Eu não estava mais ali, eu já não mais pertencia àquele mundo.
– Então a que é que tu amas, excêntrico estrangeiro?
– Amo as nuvens… as nuvens que passam… longe… lá muito longe… as maravilhosas nuvens!Charles Baudelaire
Ela foi à primeira reunião escolar do filho. As aulas tinham começado fazia dois meses. De novo, um mundo novo para a estrangeira. Normas de conduta dadas por professoras simpáticas e competentes. Tudo nos devidos lugares. Até a criança nascida da estrangeira se encaixava no cenário de boa. Os pais ocupavam as cadeiras dos alunos enquanto a professora explicava. „É importante a pontualidade, é importante que os pais verifiquem todos os dias o caderno de aviso do filho…“ e coisas do tipo. Sentados estávamos em círculo, sem hierarquias de espaço. „É importante os alunos terem a bolsa de lapizeira completa, caneta, lápis, borracha, apontador…“ Ela, a estrangeira, nem esperou a professora terminar a frase. „Ah, desculpas, esqueci de controlar essas coisas, depois vi o teu recado no caderno de avisos, eu sei, eu não controlei, a semana foi tão corrida…“ A estrangeira percebe uma certa inquietação no ar. Olha ao redor e encara a professora, que não fala nada, nem uma vogal, nem uma ruga na testa. Mas o silêncio da professora foi para ela mais que legível. Ninguém estava acusando alguém especificamente, isso não era uma indireta. E ela, a estrangeira, sentiu que ainda não estava ali, que ainda não pertencia àquele mundo. Que ainda vagava entre espaços galácticos e tempos difusos, sem nunca ter chegado.
No olho da amêndoa,
no damasco, exposto
numa lágrima de figo,
sabes: eu
não sou daqui,
nunca cheguei,
nunca
saí daqui.Naschmarkt, Age de Carvalho