Atenção: qualquer semelhança invertida com a geração passada não é mera coincidência, mas, sim, plena ironia.
– Huuu, fuuu, huuu, fuuu.
Cheiro de incenso no ar. A mãe, serena, sentada no meio da sala, em posição de lótus. Inspira fundo e expira o ar em curto espaço de tempo, movendo o abdômen. Ruídos nasais. Fu, fu, fu, fu… Pranayama.
O filho de dezoito anos chega, ajeita as calças, senta-se no chão ao lado dela e espera ela terminar.
– Fu, fu, fu, fu, fuuuuuuuuuu…
– Mãe, eu preciso falar umas coisas pra você…
– O que é, meu filho? – Ela abre os olhos. Ele fala, tímido, olhando pra baixo.
– Eu decidi que vou estudar Engenharia.
Ela solta um alto ruído nasal.
– FUUUUUUUU? – Perde toda a compostura. Rugas verticais pipocam na testa.
– O quê? Você tá louco? Quer me matar de desgosto? Nós somos uma família de artistas, teu pai é cineastra, teu tio é estilista, tua mãe é escritora, tua avó foi dançarina performática. De onde você tirou essa ideia?
– Ué, tô a fim, mãe, eu gosto. Do cálculo, das coisas exatas, concretas, sabe?
– E chatas, né? Meu filho, por favor, pense bem. Olha, eu vou te levar à Universidade de Artes pra te mostrar o monte de coisas que se pode estudar lá…
Ele se levanta e alisa as calças com as mãos. Odeia calça amarrotada. Abre um pouco a janela. Detesta incensos.
Asanas. Ela levanta as nádegas para o teto. Mãos e pés no chão. Um „V“ de cabeça pra baixo. Inspira. Expira. Huuu, fuuu, huuu, fuuu.
– Mãe, você já me levou milhões de vezes lá. Conheço todos aqueles professores birutas de cabelo desgrenhado, aquelas peruas doidas e seus vestidos cafonas.
Ela leva os braços esticados para trás da cabeça, fazendo um arco com o corpo para trás.
– Essa posição eu não conhecia…
– Suryanamaskar. Saudação ao Sol.
– Ah, sei. – Ele olha o céu cinza pela janela. – Tá precisando mesmo. Quanto tempo demora pra fazer efeito?
– Engraçadinho!
Ela faz uma circunferência com os braços para cima. Huuu, fuuu. Encosta uma palma da mão na outra na altura do peito. Abre os olhos.
– Meu filho, eu te levei a todos os vernissages de artes, desfiles de moda, feiras de livros, fiz questão que você brincasse com os filhos dos nossos amigos também artistas…
– Sei, sei… Nunca me deu um McDonald’s pra comer, e filme era só Nick Park e os avant-gardes chatérrimos do canal ARTE. Spielberg era censurado, e Disney nem em pensamento…
– É claro! Pra você crescer sendo diferente, criativo… Te botei em colégio alternativo, aula de canto, oficina de pintura… E você resolve ser engenheiro? Ai, meu Deus, que humilhação!
Ela está em pé. A planta do pé direito apoia-se na coxa esquerda. As palmas das mãos juntas acima da cabeça. Equilíbrio! Vrikshásana. Huuu.
– Ô, coroa, poderia ser pior. Economista, marketeiro, político…
– FUUUU! – Ela desaba da pose. Ele consegue segurá-la antes que aterrize no chão. – Para, para! Tô passando mal! – Ela tampa a boca com as mãos. Mais rugas pipocando.
– Imagina só, mãe, quando eu me formar, vou poder colocar em todos os documentos, e até na porta da minha casa,uma plaquinha dourada: Herr Diplom Ingenieur…
– UUUI! Que cafonice! – As mãos tampam os próprios olhos. – Não faça isso. Você quer matar a tua mãe de desgosto? Ai, meu Deus, o que eu vou falar pras minhas amigas…
– Praquelas descabeladas maconheiras?
– É! E também sensatas, huuu, emancipadas, fuuu, esclarecidas… – De barriga para baixo, ela segura os pés com as mãos fazendo um arco. Dhanurásana.
– Pelo menos, a Francisca não vai poder falar nada. Com aquela filha juíza…
– É mesmo, coitada da Francisca. Teve a filha muito nova e sozinha. Não soube criar, deu nisso: juíza. Huuu.
– Até passou no concurso público pra promotora.
– FUUU? Jura? Que horror! Isso a Francisca nem teve a coragem de me contar…
– Tá vendo, mãezinha, poderia ser muito pior… E tem uma outra coisa que eu também queria falar com você…
Ela está ereta, mãos e cabeça no chão, pés apontando para o teto. Shirshásana. Pouso sobre a cabeça.
– O que é, meu filho?
– Sabe a Lena que veio aqui um dia …
– Aquela descendente da família aristocrática? Bem caretinha de óculos? Sei. Huuu.
– Pois é, a gente tá namorando…
TUM! As pernas desabam no chão. O pescoço torto.
– Como assim?
– É, a gente tá até pensando em morar junto…
O corpo todo estatelado, largado no chão. Olhos arregalados.
– Fuuu? Você tá louco? Quer me matar de desgosto? Eu fiz de tudo pra você ser um cara moderno, esclarecido, liberal, de esquerda, lutar pelos direitos dos oprimidos, e agora você tá pensando em casar com essa… essa… sem graça?
– Eu gosto dela mãe, ela é simples, calma e… previsível, coisa que você não é!
– Obrigada pelo elogio. Pelo menos no humor você puxou à familia. Mas, meu filho – Ela, agora mais calma, levanta e segura a mão dele. –, teu pai e eu abraçamos árvore na Lagoa junto com Fernando Gabeira, lutamos pela liberação da Cannabis na Áustria – A outra mão acaricia o cabelo dele –, organizamos raves em Goa, no sul da Índia… Pensa bem, não tem nada a ver ela e a familia dela com a gente…
– E daí? Mas tem tudo a ver comigo!
Ela junta as mãos em oração e levanta os olhos para o teto.
– Ai, meu Buda, Hare Krishna, Rajnish e todos em que eu já acreditei nesta vida! Me digam onde foi que eu errei com esse menino?
– Dramática…
– Imagina você com aquela Bieder, aquela burguesa! Aposto como ela vai querer montar o apê todinho na IKEA…
– É verdade, ela já até me mostrou umas coisas do catálogo…
– Pois é. Nossa casa foi toda montada com amor e carinho pelos Flohmärktes, os mercados das pulgas da Europa…
– Feiras que vendiam montes de entulhos, coisa velha e estragada, e eu era obrigado a ir junto. Criança sofre!
– Eu te comprei roupas coloridas quando criança, panelinhas, fogãozinho, boneca…
– E foi ótimo, mãe, aprendi assim a ser um bom pai e a cozinhar. Você mesma adora as minhas panquecas…
Ela deita no chão de barriga para cima. Braços ao longo do corpo, olhos fechados. Shavásana. Repouso. Huuu, fuuu.
– Mas, meu filho, eu tava crente que você ia se interessar pelo Conrad, aquele teu amigo bonitão que é DJ e grafiteiro…
– Ele é legal, mas eu não gosto de homens, mãe, meu negócio é muher!
– Mas como você pode saber se nunca provou? Além do mais, eu estava me preparando pra ter só genros! Meu filho, eu sou uma péssima sogra para as mulheres. Genro é muito melhor, não tem competição, nem fofoca, nem mal-entendido. O Conrad é um cara tão legal, tão moderno.
Ela levanta e vai em direção ao bar, remexendo o pescoço. Dor. Bota uma boa dose de uísque no copo. Foda-se a ioga.
– Ele é só um bom amigo, Oida (véi)!
„Mil vezes um genro bicha do que uma nora pentelha!”, ela pensa enquanto saboreia o single malt.
– Mas você sempre adorou brincar com todos os titios bichas amigos da mamãe…
– Porque eles são engraçados, divertidos, só por isso.
– Aaaai, AAAAI.
– Que foi, mãe? Tá passando mal?
– Tô com uma dor aqui no peito… – Ela respira fundo. Huuu, fuuu.
– Quer que eu chame um médico?
– Não, fica frio, senta aqui do meu lado. – Cabeça de filho entre mãos de mãe. Bafo de álcool. Ele afasta um pouco o rosto. Maternos músculos faciais em ação. Ela apronta uma feição bem meiga. – Me promete duas coisas? Olha só, em vez de Engenharia, faz Arquitetura, é quase a mesma coisa. Lá na Faculdade de Artes Avançadas, que é uma das melhores do mundo, tá? Daí, quem sabe, você já enturmado no meio artístico, toma gosto pela coisa e vira um designer de interiores ou de produtos ou de qualquer coisa! Mas pelo menos designer, meu filho. Por favor, não envergonhe a nossa família.
– Huuu. – Agora foi ele que precisou respirar fundo. – Ok, mãe. Vou pensar. E a outra coisa?
– Por favor, me prometa: dá pelo menos uma chance pro Conrad…
– Fuuu!?
Comments are closed.