De tropeços a vexames: tudo ela já tinha experimentado. Um tempo atrás pediu pro marido comprar Milchreis e ele trouxe arroz para cozinhar com leite e não o desejado por ela: Reismilch (leite de arroz). A última gafe foi quando pediu pra vendedora da loja chique no Graben para experimentar a blusa vemelho-vinho da vitrine. A vendedora riu, irônica.
– A senhora quer dizer vinho-vermelho?
Armada de coragem, bateu na porta da vizinha de baixo pra perguntar se por acaso ela estava com o mesmo problema. A velhinha abriu a porta e foi muito gentil, escutou Júlia falar.
– A senhora também está com problemas com o interfone? Acho que o meu não está funcionando…
No que ela respondeu:
– Ah, minha querida, eu não sei, como eu posso saber? Faz mais de 10 anos que eu não recebo visitas…
Júlia sentiu um desespero surreal, uma vontade de sair correndo mas não teve como recusar o convite da velhinha e entrar pra tomar um café. A história explicada, a velhinha falava por ela e por todas as centenas que Júlia via nas ruas. O marido morreu, não tinham filhos… A solidão como normalidade de vida. Júlia voltou pro seu apartamento com falta de ar, nó no estômago.
Werner chegou no final do dia e a encontrou com a testa franzida, os olhos vermelhos. Não entendeu nada quando ela fez ele prometer que não envelheceriam neste país. E começou a aumentar o tom da voz, andando pela sala, agitada, apreensiva.
– Se você quiser, que fique! Eu, antes de começar a alimentar pombos no parque da cidade, tô saindo batida! Muito antes, aliás! Tá doido, prefiro os pombos do Campo de São Bento!
– Mas por que isto agora, Júlia? O que aconteceu? Alguém foi mal-educado de novo com você? Te xingaram de „Ausländer“(estrangeiro)? A vizinha reclamou do barulho?
Sem dar atenção à pergunta, ela continuava seu discurso:
– Prefiro sentir o fedor do valão da Cinco de Julho, pegar micose na praia das Flexas, dengue em Jurujuba…
Werner cada vez mais atordoado. O cheiro de comida que pairava no ar,deduzia que ela havia preparado algo gostoso de novo. Cheio de fome e tendo que aturar uma perua desequilibrada que não parava de falar alto como se estivesse num palco:
–… Agüento tudo! Sovacos fedendo no ônibus, fila de banco, engarrafamento na ponte, lavar roupa no tanque, louça na mão, aturo tudo!…
Era sempre assim, eles estavam juntos há tanto tempo mas era sempre essa surpresa cultural, cada dia ela vinha com um pacote diferente que tirava ele do sério, dos trilhos, da razão e o jogava de volta à estaca zero. Quando ele achava que a conhecia, vinha ela com uma situação absurda e uma reação ainda mais absurda e ele começava de novo do nada.
Ela andava de um lado para o outro no tablado imaginário:
– Amanhã mesmo ligo pro Rodrigo da Imobiliária. Tenho certeza que ele arruma algum apê pra gente comprar, daqueles tipo com chuveiro corona que dá choque, armário embutido colado na cama, a cama colada na porta… Fôda-se, qualquer coisa tá bom. Ônibus barulhento passando embaixo da minha janela, vista pra favela, pagode alto comendo solto a noite inteira! Foda-se, melhor do que viver neste túmulo de silêncio…
– Júlia… – Ela continuava a falar sem nem notar a presença dele:
– Pego um financiamento na Caixa, titio já foi gerente lá e me ajuda, papai dá um pouco, o teu também dá, a gente fica uns 3 anos sem fazer férias, 6 meses comendo pão com lingüiça, tem que dar, tem que dar, foda-se… Qualquer cubículo em Niterói tá bom!
Ele teve que aumentar o tom de voz:
– JÚLIA, o que aconteceu? Não estou entendendo nada…
Como se fosse numa prova de física em que essa lei não constava na matéria, ele olhava pra cara dela confuso, perdido. Cadê o botão? Cadê a chave, a fórmula matemática pra entender esta mulher?
– Foi a vizinha do primeiro andar, a velhinha… – Werner suspira aliviado:
– Ah! A vizinha… Olha, não liga, Júlia, ela é meio doida mesmo. Seja o que for que ela tenha falado, esqueça, não se acabe assim … – Werner cansava de falar isto. Como alguém pode sentir tanto? Como alguém pode se importar tanto com o que um estranho falou?
– Mas eu fui super bem tratada…
– Então…?
Júlia pensava em como abordar o assunto da forma mais dramática possível, tentando fazer com que ele sinta o que ela sentiu. Bom, isto até seria pedir demais mas quem sabe ela consegue fazer com que ele pelo menos entenda o que eu senti?
– Ela…– Júlia respira curto. Rugas de expressão a todo vapor. Mãos que procuram coisas imaginárias no ar. O olhar divagando pelo céu da janela. Era tarefa quase impossível o que ela queria: a compreensão profunda dele. Ela sabia disso e o amor também funcionava assim. A chama se alimentava deste eterno pedaço desconhecido, indomável, indecifrável que um tinha no outro.
No final acaba sempre do mesmo jeito: ele a conforta, passa a mão na cabeça e diz pra ela não ligar, que besteira… Cada um volta ao seu mundo achando que entendeu o mundo do outro como se fosse uma viagem de fim de semana. Doce ilusão.
Ela folheia a revista esquecida na mesa enquanto ele enfia a cara nas panelas e vai saborear a vida exótica de mais uma comida feita pela esposa. Polenta com Gulasch de coração de galinha. Amor que se alimenta de compreensão e abismos.
Caem na cama. Ela é movida por emoções. Ele, guiado por fatos. Universos diferentes se tornando um só. O abismo é preenchido como um rio… que transborda….Gozam…
Dividiram o mesmo cigarro, olhando para o teto.
Ela pensa em como resolver este dilema: „O valão pode esperar. Chuveiro corona também. Amanhã marco com Martha de vir aqui e peço a ela para apertar o botão do interfone até doer o dedo! E também a minha campainha, vou pedir pra ela tocar, tocar! E esmurrar a minha porta! E quando eu abrir, vou me jogar nos braços dela e berrar de felicidade! Martha vai me entender, ela já mora aqui há mais de 20 anos e não vai me chamar de louca. Não, não somos loucas, loucos são eles, loucos são…sou…“
Adormecem…
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