Como vocês dizem aí no Brasil: loucura pouca é bobagem! Sou filho único, e catástrofe maior não poderia existir. Fui criado nos moldes normais. Bom, pelo menos eu achava que eram normais… até conhecer outros. Me lembro de coisas bobas, mas que me fizeram ser o homem que sou hoje, e que,às vezes, luto pra não ser. Por exemplo: brincando com outras crianças, eu era o que estava sempre certo. Pelo menos, era o que a minha mãe, com suas atitudes, demonstrava. Nunca precisei dividir, compartilhar, ser solidário. Isso era, e sempre será, tarefa do governo, não me cabe ser bonzinho, não nasci nem fui criado para tal. Se eu tomava o brinquedo de uma criança no parquinho, minha mãe sempre estava por perto pra me defender e falar para a criança que nem conhecia: “Meu filho só quer brincar um pouquinho, depois ele te devolve, tá?” E, se a criança insistia, ela tinha sempre os argumentos mais tenebrosos pra usar com filhos alheios: “Não seja egoísta, garoto!” Assim, eu fui crescendo com a certeza de que o mundo está a meu serviço e direito é um dever que o mundo me oferece. Na adolescência, as coisas ficaram complicadas. Eu me rebelei contra todos. Até aí, normal. Pensei em virar homossexual, mas não consegui, deve ser uma questão biológica ou hereditária, não sei, só sei que não é a minha. Eu procurava apenas, desesperadamente, algum fator pra me confrontar com minha família e, principalmente, com minha mãe. Aquela mulher que me proveu comida e amor, e me fez viver numa bolha que agora eu queria estourar, porque o esperma que saía do meu corpo, a cada masturbação, me implorava essa liberdade. Até que achei o que procurava. A vingança limpa, justa e inabalável: não serei advogado como meu pai, minha mãe, meus avós e tios! Larguei os estudos, fui trabalhar num bar. No início, foi muito difícil: trabalhar em equipe, ajudar, servir, tudo do que, a vida inteira, me pouparam. No primeiro dia de trabalho, me lembrei de Buda, que tinha muitos empregados, mas, um dia, fugiu do castelo e ficou pasmo com o que viu. E o que ele viu foi o mundo em si: pobreza, doenças, injustiças. Os colegas brigavam comigo, e eu nunca tinha discutido na vida! Eu estourava de raiva, quebrava copos. Os cacos de vidro estourando a minha vida-bolha. Uma vergonha. Mas era eu que nascia de novo. Da raiva, da mentira e da ilusão, eu me paria de novo nos ataques. Não aguentei tanta verdade, pedi demissão. Arrasado, deprimido, fugi pra Londres, onde todos estão menos que nem aí pra todos. Uma melancia amarrada na cabeça, e você pega o metrô sem ninguém olhar pra tua cara! Terminei meus estudos com honor, tradutor profissional. Trabalho solitário e autossuficiente, perfeito pra mim. “Brinque sozinho, meu filho, é melhor. Assim você não briga com ninguém.” E tinha o prazer das mulheres, ai, mulheres, que coisa boa! Mas elas sempre vinham com este papo de morar junto e, quando morava junto, era um tal de “você não faz isto, eu faço tudo”… Daí, eu perdia a paciência e botava pra correr! Mas, sem elas, eu não conseguia (e não consigo) ficar. Procurei as mais autônomas e emancipadas e, assim, fui mais feliz. Cada um no seu canto, claro. Afinal, pra que dividir problemas e alegrias quando se pode dividir só alegrias? Eu fazendo uma bela carreira como tradutor, e a gente se vendo nas horas vagas. Viagens e passeios juntos, contas de hotel e restaurante separadas. Só a cama era dividida. Ué, elas não lutaram tanto pra isso? Afinal, era isso que eu entendia como emancipação… e acho ótimo assim! Eu e você somos duas pessoas juntas, mas nunca somos “nós”! Esse era o meu credo. Daí, elas começaram a entrar naquela fase dos 30, o relógio biológico batendo cada vez mais estridente: filhos, filhos! Saí fora batido! Todas as vezes, por mais que as amasse, eu sumia ou destruía o amor. Criança berrando de noite, babando nos meus ternos, mulher histérica me mandando trocar a fralda? Nicht mit mir, comigo não! E aguentei bem, viu? Cheguei aos meus quase 50 anos ainda mandando bem na cama, em boa forma e com uma vasta cabeleira grisalha, que, aqui, eles chamam de sal e pimenta. A mulherada continua querendo. Até aqui tudo ótimo: resolvi,ou achava que tinha resolvido, meus conflitos mais íntimos, e vivia bem comigo mesmo, sem muito perguntar nem questionar. Até que fui passar férias no Brasil. No momento em que pisei no aeroporto do Rio, percebi que tudo seria diferente. A começar pelo Dutyfree. Acho que o Brasil é o único lugar do mundo que oferece um Dutyfree pra quem chega no país! Calor, suor, mulheres lindíssimas seminuas. A variedade e oferta eram tantas que fiquei até enjoado! Comi umas poucas que ficavam na praia de Copacabana catando gringo. Algumas até divertidas, mas… sabe de uma coisa? Acho mesmo que bocetas, cus e paus são sempre iguais: buracos e varas! A diferença está em outro lugar, e talvez aqueles caras que cantavam bossa nova tivessem razão, não dá pra explicar emoções. Mas me emocionei ao entender a tradução do provérbio Aus dem Augen, aus dem Sinn, que, em alemão, é tão seco e sem graça. As palavras me caíram como um carinho no rosto: o que os olhos não veem, o coração não sente. Mergulhei fundo na bossa. Nadando em novas águas, adotando novas crenças… “O coração tem razões que a própria razão desconhece.” E acho que foi nessa mesma noite, depois de ler sobre Vinicius, Jobins e Gilbertos, enquanto eu tomava um chopp no bar da boate, que ela me apareceu. Linda, meio mulata, meio índia, meio latina. O sorriso que saía do rosto, um cheiro bom, fresco. Sem nem me perguntar nada, me abraçou, me tacou um beijo e me puxou pra dançar… Eu? Dançar? Eu, que passei a vida inteira sendo o suficiente pra mim e para as minhas contas. Eu? Dançar com alguém? “Querida, o que eu sei é trepar muito bem!” Mas isso eu não poderia dizer pra ela. Não agora, no meio da boate, e, ainda por cima, em inglês. Aliás, será que ela fala inglês? Nem isso eu sabia. Mas a mulher me atropelou, os braços entrelaçados no meu corpo, falando milhões de coisas que eu não entendia: au, ãuo, ão, ão? Meu pau duro no meio da pista, e ela roçando em mim. Eu não tenho armas contra isto, não sei como parar este furacão! Acabamos numa cama, que nem sei mais onde era, e não saímos de lá durante dias… Isso já faz uns três anos. De lá pra cá, aprendi muita coisa. Por exemplo, que a palavra “porra” significa esperma, e não vírgula, apesar de os cariocas a usarem como tal. “Porra, daí eu cheguei lá, e o cara, porra, levamos um papo… e, porra, desce mais uma cerveja!” E por aí vai. Isso é que dá aprender português no posto 9… Mas, voltando à minha diva divina: ela já tem filhos, que alívio! Tem uma carreira, é emancipada, ganha tanto quanto eu, trepa que é uma deusa! Cheirosa, bem-humorada, e consegue me fazer rir. Eu, que sempre fui preocupado em ser pelo menos correto, que fui criado pra ser um durchschnitliche Arschloch, um filho da puta normal, logo eu? Essa mulher me arrancou as roupas e, junto, me arrancou todas as certezas. Todos os credos que eu tinha numa vida eficiente, num sistema social previsível com direito – no final da jogada – a seguro de vida e aposentadoria decente. Um catálogo de emoções com cores que desconheço, uma gramática que traduz vontades, mas que não possui pontuações. Ela remexe meus livros, reclama da poeira, bota as mãos na cintura, os quadris para um lado e pergunta, com um monte de papéis velhos na mão: “Pra que serve isso?” Tira minhas certezas do lugar, bagunça a minha indolência, revira a gaveta dos meus hábitos… E, se não gosta de alguma coisa, ih, sai de baixo. O mundo, pra ela, existe pra ser usado, amado, indagado, idolatrado. Mesmo sem saber alemão, ela desafia os antipáticos, os sonsos e escrotos. Arranca sorrisos de quem nem merece… Emoções sem censura nem aviso prévio. Não teve outro jeito, não existia outra solução a não ser ficarmos juntos. Sim, juntos! A equação finalmente aprendida: eu + ela = nós. Ela largou casa própria e filhos formados no Brasil pra entrar no meu mundo de chopp à beira do lago Neusiedler, de pessoas competentes e profissionais, mas também chatas e rabugentas, de vinhos maravilhosos e quatro estações distintas… Ah, se felicidade não for isso… Só tem uma coisa que eu não entendo e que, por isso, me apaixonei perdidamente por ela: nos restaurantes e hotéis, ela sempre insiste em pagar toda a conta. “Meu filho, devolva o brinquedo pro amiguinho e empreste um dos teus carrinhos para ele.”
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